Ao longo da década de 1980 na cidade de Vitória, grande
parte dos grupos de teatro em atividade no período tinha em sua composição
ativistas gays e simpatizantes. Em sua maioria conhecidos, de alguma forma, na
região e muitos até mesmo no estado. As manifestações artísticas, em especial o
teatro, eram amplamente divulgadas nos jornais de grande circulação,
principalmente porque ocupantes dos grupos teatrais faziam parte do quadro de
jornalistas. Os artistas do período tinham ocupações nos ramos da comunicação,
o que facilitava o acesso aos veículos midiáticos. Wilson Nunes, Milson
Henriques, Alvarito Mendes Filho, Milton Neves eram todos funcionários das
emissoras de rádio e televisão da capital e responsáveis por grupos de teatro e
espetáculos em cartaz. No andar de cima da Boate Eros se localizava o ponto de
encontro desses e outros grupos de teatro.
Situada
em uma das ruas do tão visitado Parque Moscoso, a boate tornou-se local de encontros
amorosos e de outras formas de sociabilidade da comunidade homossexual desde a
sua fundação no final dos anos 1980 até seu fechamento em meados da primeira
metade dos anos 2000. Para entender a importância desse espaço, é necessário
compreender que o contexto político brasileiro a partir de meados dos anos 1980
– marcado pelo processo de abertura democrática - é contraditório. Por um lado,
há pessoas tentando se livrar de todos os maus agouros da ditadura, denunciando
ou sofrendo suas consequências. Por outro lado, há outras pessoas recordando
saudosas da disciplina que mantinha a “ordem” e os “bons costumes”, colocando
cada tipo de cidadão em seu lugar social e mantendo uma forçada disciplina.
Dentro da Boate Eros, porém, os preconceitos eram substituídos por uma maior
liberdade. Apesar de toda repressão política e social e da grande incidência de
preconceito, apesar das batidas policiais recorrentes na boate, o local ainda
acolhia a diversidade artística como em nenhum outro lugar.
O movimento gay da época ainda estava em fase inicial de
organização na capital capixaba. Em sua maioria, eram grupos que satirizavam as
questões políticas, mas não tinham organização social como base além do grupo
de teatro e das performances transformistas individuais. Embora a diversão
pessoal fosse um importante motivador para esses grupos de teatro, seus
artistas também estavam intuídos do desejo de apresentar para o público uma
realidade vivida por muitos deles dentro de suas vidas. Esses grupos aparentemente
não tinham como intenção inicial transformar concepções sociais mais amplas
sobre gênero e sexualidade, apenas querendo compartilhar que as orientações
sexuais diversas estão em qualquer lugar. Apesar dessa possível ausência de
intencionalidade, uma transformação política que está “entre” o mundo real e o
ficcional ocorre naquele período com o fortalecimento das identidades gay.
Essa pesquisa trata do tema da formação da identidade gay
a partir de um recorte específico, feito na capital do estado do Espírito Santo
(ES), entre os frequentadores da Boate Eros, local onde aconteciam, além das
noitadas de discoteca, shows de transformistas e apresentação de espetáculos de
teatro, em sua essência, dentro da temática gay. Nesse local, o ativismo era
forte, frequente e recorrente, o que nos leva a crer que a “performance
artística”, que segundo Bonfitto (2013) é uma forma potente de engajamento
social e político, tem sua parcela de influência na formação da identidade gay
de seus frequentadores. Dessa maneira, sugerimos que a construção de
identidades gay e o enfrentamento a discriminação por orientação sexual no
âmbito familiar e na comunidade eram em alguma medida embasados nas relações sociais
que se fortaleciam a partir da participação desses indivíduos nas atividades da
boate, seja como ativistas artistas, seja como ativistas públicos.
Exemplos de performances artísticas fortemente engajadas
e relacionadas às identidades gay, podem ser observados em espetáculos teatrais
que englobavam tais temas. Seus textos eram fictícios, contados em forma de
comédia, usadas para divertir um público que vivia situações aproximadas
daquelas contadas no texto. Muitas situações refletiam vontades, mas não necessariamente
uma realidade. Dois exemplos distintos foram espetáculos incentivados por
Wilson Nunes, artista ativista que tinha muita influência entre jovens
iniciantes no teatro. Dentre outros nomes, Wilson Nunes foi um grande
propagador das artes performáticas e teatrais dentro da Boate Eros e no mercado
artístico da região. Sua personagem Najla Paquetá era a apresentadora dos
eventos que aconteciam na boate além de dublar e cantar ao vivo músicas das
musas Clara Nunes, Elis Regina e Alcione. Em sua carreira artística participou
de inúmeras montagens teatrais, sendo a primeira um espetáculo que ficou
conhecido pelo mundo e provavelmente deu-lhe o impulso para a consagração na
classe artística teatral. A montagem do espetáculo “Os gatos do beco” de
autoria de Alvarito Mendes Filho, não tinha relações com a comunidade gay ou o
ambiente da boate além do fato de que os ensaios e encontros artísticos
acontecerem na mesma em horários em que não funcionava. Outros textos do autor,
no entanto, estavam fortemente relacionados à identidade gay.
Um texto de autoria do próprio Wilson, “Minha Sogra 44”,
ilustrava bem os relacionamentos hétero e homossexuais dentro de um mesmo
ambiente, que como faziam parte de uma mesma família, se aceitavam de forma
natural e normal. Mas ao decorrer da história entra em cena um personagem
heteronormativo que não estava “acostumado” com as situações daquela família “diferente”
dos padrões da sociedade daquela época.
Outro espetáculo, que fez tanto sucesso a ponto de se
manter em cartaz durante muitos anos tendo várias sequências, foi “A Perereca
da Marly”, escrita por Milson Henriques, que narra a história da personagem de
tirinha de jornal criada pelo próprio Milson, cartunista de jornal de grande
circulação no estado. Os personagens principais do espetáculo eram mulheres,
mas os atores eram homens, que ficaram consagrados e conhecidos pelas personagens.
Marly, representada por José Luiz Gobbi, chegou a ser ala de escola de samba no
estado. Em decorrência do espetáculo, Gobbi ficou mais conhecido como Marly do
que como qualquer outro personagem que ele tenha feito (se fez, ficou
esquecido).
Cabe mencionar ainda, um terceiro exemplo, o espetáculo
“Por Favor Matem Minha Empregada” escrito pelo servidor federal Edilson Pedrini,
que tinha como estrela o ator Wilson Nunes, que se travestia da personagem
Melanie Marques. A personagem era conhecida na Boate Eros como aquela que
assumia o controle das apresentações da casa construindo uma performance que
durava a noite inteira chamando os shows, apresentando números performáticos
(muitas vezes cantado ao vivo) que traziam para a casa um grande número de
expectadores que já haviam se tornado seus fãs.
Além
dos espetáculos teatrais, a Boate Eros contava, ainda, com espetáculos de
transformistas. Os shows de dublagem agitavam o público de várias maneiras.
Alguns dos transformistas traziam em seu repertório músicas do pop
internacional da moda. Divertiam a elite burguesa com a interpretação das
músicas que faziam parte de seu repertório cotidiano. Outros reviviam grandes
clássicos da música romântica internacional. Alguns, ainda, levavam para o
palco os clássicos da MPB e do samba, músicas que fizeram uma geração
protestar, lutar por direitos e criar movimentos que ficaram marcados por essas
canções.
Suas
performances criticavam ou enalteciam pensamentos sociopolíticos, desejos e
anseios daquele e de outros grupos da sociedade brasileira. Um trabalho que ia
muito além de uma dublagem musical. Uma performance que sugeria, através de seu
comportamento corporal, de seu figurino, de sua maquiagem, dentre outros
elementos, um ato de revolta, de insubordinação e de transformação. Alguns
performers transformistas da boate foram consagrados tanto na comunidade gay
quanto na sociedade em geral, seja nas profissões até então cabíveis apenas
para homossexuais – cabeleireiros, maquiadores, atores – seja no
empreendedorismo, no ativismo em movimentos sociais ou na política
institucional. Nomes como Tarsilla Open, Bianca Castelli, Denner, Lauren
Dollar, Mery Ofidê Relpi, Dayse Lilica, Miss Linda, Pâmela Castilho e Chica
Chiclete foram marcantes na boate e são personalidades muito conhecidas hoje no
cenário capixaba.
Ao subir no palco, essas artistas vestem uma “máscara”
que pressupõe estudos e entendimentos daquele personagem que ele está
representando. Nos shows da Boate Eros, cada ator ou performer se entrega de
maneira única. Os transformistas em suas performances são cada um, a sua
maneira, personagens diferentes. As relações entre suas personagens e suas
identidades sociais fora do âmbito da Boate Eros eram diversas.
Exemplos são Bianca Castelli, transformista, mulher
trans, maquiadora. Suas experiências na sociedade são colocadas no palco a
partir de seus talentos e suas performances externas. Tudo influencia na sua
composição e na diferenciação de seu personagem aos dos outros. Bianca se
apresenta como Bianca e é conhecida na sociedade como Bianca. Diferente, mas
não distante, temos as performances de Chica Chiclete. A personagem é vivida
pelo transformista conhecido fora do âmbito da boate como Francisco Spalla. O
empresário chegou a ocupar cadeira no legislativo. Sua eleição se deu a partir
da fama e do sucesso que Chica tinha na comunidade. Mas quem assumiu o cargo
foi Francisco. Já Ângela Jackson era atriz muito mais que transformista. Suas
performances não eram só os shows de dublagem. Ela cantava, contava com um coro
de dançarinos e criava cenas teatrais no meio do show. Ângela é animadora de
festas e só nas festas tem esse nome. Em sua vida social, fora do mundo das
artes, Rodrigo é homem, gay e trabalha em repartição pública, sem maquiagem,
sem saltos, sem peruca.
Analisando esse cenário, essa pesquisa está teoricamente
fundamentada em uma revisão da literatura sobre a história do movimento LGBT no
Brasil e sobre o conceito de “performance teatral” de Matteo Bonfitto, este
último que trata do campo artístico. Do ponto de vista metodológico, essa
investigação buscará descrever as performances teatrais em espetáculos teatrais
e de transformistas ocorridos nessa boate no período de sua existência (final
dos anos 1980 e início dos anos 2000) buscando compreender como essas
performances tensionaram identidades de gênero e contribuíram para a formação
da identidade gay de seus artistas e frequentadores. Assim, o problema de
pesquisa que esse projeto propõe pode ser resumido da seguinte forma: quais são
as relações entre as performances teatrais realizadas em espetáculos teatrais e
shows de transformistas na Boate Eros e a formação da identidade gay na Grande
Vitória entre o final da década de 1980 e o início dos anos 2000?
Essa pesquisa se mostra viável, já que o acesso a
entrevistas é fácil devido à proximidade do pesquisador com essas pessoas. Fui
frequentador assíduo da boate, principalmente nos anos de 1990. Como possuía um
ambiente gay próximo à boate, a frequência era fácil. Participava da sociedade
sem lucros de uma sauna que era um ponto de “esquenta” para alguns
frequentadores da boate. Fazia parte de um grupo de teatro, mas que não tinha
apresentações na boate, porém sempre estava presente enquanto expectador.
Possuía uma ligação muito forte com os artistas que faziam parte, tanto do
grupo de teatro, como das transformistas que executavam os shows da noite.
Durante um tempo participei dos concursos de “Garoto Eros” e auxiliei na
produção de alguns dos shows de transformistas.
Ademais, existe um acervo particular audiovisual de
muitas noites da Boate Eros que registraram desde a preparação da noite, os
shows, alguns espetáculos de teatro até a despedida da noite, com luzes
acendendo, sol nascendo e muitos depoimentos de gays e travestis que
participaram enquanto público, atores ou transformistas que fizeram os shows da
casa. Além do trabalho acadêmico, essa pesquisa tem como objetivo, ainda,
fundamentar a construção de um espetáculo teatral que irá ilustrar esse período
histórico.