quarta-feira, 27 de maio de 2020

Boate Eros


Entre meados dos anos 1980 e meados dos anos 2000 a Boate Eros foi ponto de encontro gay muito frequentado na cidade de Vitória, capital capixaba. Os shows, as peças de teatro, as amizades, os romances ficaram registrados nas lembranças e memórias dos frequentadores. Essa pesquisa se justifica, pois há uma fragilidade muito grande nos registros das atividades locais, já que pouco se encontra de material de pesquisa sobre o histórico da boate.
Cabe destacar, porém, que nos últimos cinco anos, devido ao falecimento de alguns desses nomes, algumas pesquisas começaram a tomar corpo. Um filme de resgate feito de recortes das fitas VHS de shows da boate deu evidência a uma das transformistas, Dayse Lilica, considerada por alguns a melhor transformista da casa e que tinha como público travestis que “faziam vida” na orla da praia de Camburi. Outros nomes também são citados no vídeo, nomes de transformistas que se tornaram famosas ativistas das causas LGBT nacional. Mas o vídeo não pode ser caracterizado como um trabalho acadêmico, já que é apenas a reprodução na integra de cada show, sem considerações ou discussões sobre o assunto.
Também no que tange ao surgimento do movimentos LGBT no estado do Espírito Santo, há uma literatura escassa e o acesso aos registros existentes  – que em sua maioria são artísticos e não acadêmicos - é restrito. Durante a revisão de literatura tivemos acesso ao livro “Desaquendando a História Drag no mundo, no Brasil e no Espírito Santo” (BRAGANÇA, 2018). No entanto, a bibliografia lançada no estado sobre o assunto ainda é reduzida.
Dessa forma, considero que essa pesquisa pode auxiliar na identificação e no reconhecimento tanto das diversas identidades de gênero que hoje fazem parte de nosso cotidiano, quanto do “ativismo teatral” ao longo da década de 1980, período que marca o fim do regime militar no Brasil e no qual a repressão artística e sexual afetava de maneira direta aos grupos gays. Essa liberdade que se tinha dentro da boate não podia ser desfrutada no meio da rua, mas muitos artistas enfrentavam a sociedade e mantinham um personagem em tempo integral.

As performances teatrais ocorridas na Boate Eros ao longo do recorte da pesquisa foram marcadas por um engajamento social e político, tensionando estereótipos de gênero, abordando a temática da diversidade sexual e fortalecendo as identidades gays do público frequentador e dos próprios artistas.

O Teatro e a História do Movimento LGBT


O Teatro e a História do Movimento LGBT

Para que possa entender bem como o movimento cultural contribuiu de alguma forma na construção do movimento LGBT na capital do Espírito Santo, entendo como necessário fazer um breve relato sobre a história do movimento no Brasil. As manifestações desse movimento têm início desde a década de 1950, porém adquirem força e registros no final da década de 1960. Arrisco falar que sempre houve manifestações suprimidas pelo preconceito ou pelo medo de retaliações.
Regina Facchini (2003) trata da história do movimento separando três fases compreendidas entre meados dos anos 1970 e início dos anos 2000. O que marca a data inicial da pesquisa foi o surgimento do “SOMOS”, primeiro grupo do movimento registrado. A partir da abertura política que afrouxa os moldes ditatoriais e se aproxima das tentativas de se instituir uma política mais democrática, os movimentos enquadrados como “alternativos” ou “libertários” são enquadrados nas bibliografias de movimentos sociais. Nomeada como a “primeira onda” do movimento homossexual brasileiro, este momento marca o início da luta pela igualdade, liberdade de expressão e reconhecimento das identidades pessoais e de gênero (FACCHINI, 2003).
Essa primeira onda traz propostas antiautoritaristsa e comunitaristas, focadas no fortalecimento da identidade homossexual que vem sendo constituída. Vários grupos são formados no período que se inicia em meados dos anos 1970 e se desenrola até meados dos anos de 1980, principalmente no eixo Rio-São Paulo, espaço em que se concentrou o maior número de grupos em toda a história do movimento. Um dos grandes marcos da história foi a edição e publicação do jornal “Lampião da Esquina”, imprensa específica que além de divulgar as ações ampliava a visibilidade do movimento. Os encontros questionavam o termo “gay”, querendo se afastar da norteamericanização que ainda estava muito forte em toda a nação, e se adota  o uso do termo “orientação sexual” em substituição e levantando o questionamento sobre as questões anteriores que usavam termos de “opção” ou “essência” (FACCHINI, 2003).

“Outra mudança importante desse período é a adoção do termo "orientação sexual", de modo a deslocar a polarização acerca da homossexualidade pensada como uma "opção" ou como uma "condição" inata. O uso do termo "orientação sexual" implica afirmar que não se trata de escolha individual racional e voluntária, mas não se trata também de uma determinação simples. A adoção desse termo foi fundamental para as lutas empreendidas pelo Grupo Triângulo Rosa10. Esse grupo do Rio de Janeiro tinha por liderança João Antonio Mascarenhas, já falecido, que era um advogado e concentrava-se na garantia de questões legais.” (Conselho Regional de Psicologia de São Paulo acesso em 23 de abr. de 2020).

O período de “redemocratização”, tratado por Facchini (2003) como a “segunda onda” do movimento homossexual brasileiro foi considerado por ela como o período de declínio do movimento devido a diversos fatores. A “peste gay”, termo pejorativo utilizado na época para se referir à epidemia da AIDS, que em meados dos anos 1980 foi totalmente associada aos homossexuais, é um dos grandes fatores de diluição dos grupos. Devido aos fortes ataques sofridos pela comunidade gay relacionados à AIDS, há uma tentativa de uma desvinculação da imagem homossexual da mesma, desvalorizando os aspectos marginais do movimento e associando alguns personagens do período a uma imagem pública positiva. O jornal “Lampião da Esquina” fecha sua edição, deixando de certa forma, os grupos órfãos de notícias. Há um aumento dos grupos lésbicos e uma adesão de grupos de travestis. Dá-se um aumento do mercado específico para gays, o que Facchini (2000) ressalta poder ser uma ilusão de liberdade, devido a questões individuais estarem se sobressaindo ao coletivo. Apesar de se aumentar o comércio, há uma diminuição na adesão de grupos podendo assim enfraquecer a luta política. Vejo como um passo a mais para a divulgação de identidades, sendo o mercado específico gay, momentos de liberdade e felicidade, mesmo que individuais.
Os grupos de ativistas nesse período acumulam menos pessoas e os seus debates giram em torno da despatologização do homossexualismo, então visto como uma “doença mental”. Surge o termo “GLS”, ampliando as discussões de gênero e incluindo definitivamente gays e lésbicas ao mesmo grupo. O grupo de simpatizantes, que agora faz parte da sigla, é para Facchini (2003) um ganho ao movimento[1]. Baseia-se em agrupar em uma letra todos aqueles que são auxiliadores da causa, mas não se encaixam nos então ditos termos “gay” e “lésbica”.
Já no início dos anos 1990, há uma adesão da mídia e o fortalecimento do movimento através do financiamento público por parte dos Ministérios da Justiça e da Saúde que dão apoio aos encontros nacionais e auxiliam na dissociação da AIDS aos homossexuais. Inicia-se uma forte adesão de ONGs em políticas públicas de combate à AIDS e uma busca pela construção de alianças com parlamentares, organizações internacionais e grupos religiosos flexíveis a causa.
A partir de 1995, com a realização do 8º Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas (EBGL), dá-se, segundo Facchini (2003), o início de uma “terceira onda”. O encontro é realizado com recursos do Ministério da Saúde e o primeiro encontro de luta contra a AIDS. Aparecem, nesse período, as primeiras organizações de travestis e os temas mais discutidos nos encontros eram a religiosidade, a transexualidade, articulações internas no trato da autoestima e as relações externas com a igreja, a mídia, o movimento internacional e agências de financiamento.
O 9º EBGL acontece em 1997 e encerra suas atividades com o que foi considerado a primeira passeata pelas ruas na Cidade de São Paulo. A defesa de modelos modernos e igualitários e a tentativa de formulação de legislações específicas aproxima ainda mais o movimento ao Partido dos Trabalhadores (PT), que já estava presente nos encontros desde 1993. Há um aumento significativo da participação ativa no campo com o aumento de grupos organizados pelo Brasil, mantendo sua maioria em São Paulo bem como a adesão de transexuais em grupos se organizando. Os registros do artigo de Facchini (2000) se encerram no final do século XX, deixando a novos pesquisadores os relatos do novo milênio. Mas já se percebe as contribuições do movimento para o processo de reconhecimento das identidades individuais e coletivas dentro e fora dos movimentos sociais no Brasil.
Minha pesquisa propõe a entender como essa história se deu na capital do Espírito Santo e sua ligação mais próxima às apresentações culturais e grupos de grupos de teatro especificamente nas ações que aconteceram dentro da Boate Eros. Na literatura disponível, encontro em “Desaquendando a História Drag: no Mundo, no Brasil e no Espírito Santo” de Lucas Bragança lançado em 2018, uma grande aproximação à minha pesquisa. Em resumo ele trata as questões que envolvem o movimento de uma forma relativa ao tempo. No capítulo “travessos capixabas” o autor caracteriza o primeiro registro homossexual no Espírito Santo com a presença  do “Professor Irênio” (BRAGANÇA, 2018, pág. 87), um “tipo popular de Vitória”[2] que nos carnavais vestia-se de mulher, usava saltos altos e subia deslumbrante a escadaria da ladeira da Pedra, localizada onde hoje fica a Praça Costa Pereira e o Prédio Antenor Guimaraes no Centro de Vitória. Mesmo em seu livro, lançado em 2018, o autor dá um salto temporal, comentando sobre os carnavais, onde homens, inspirados no eixo Rio-São Paulo se vestem de mulheres para se divertir – com muito dança e também com sexo – e indo direto ao início do funcionamento da Boate Eros, que por muitos anos foi a única boate e um dos poucos pontos de encontro LGBT no estado (BRAGANÇA. 2018). O desenvolvimento da fundamentação teórica dessa seção irá se basear em um aprofundamento dos estudos sobre a história do movimento LGBT e, em especial, da importância da arte e do teatro LGBT nessa história. Ainda há muito a ser desenvolvida nessa parte. A pesquisa continua, assim como a procura de material específico que certamente estará presente nas referências do trabalho final. Tanto o histórico do movimento no estado quanto as questões cênicas e dramáticas que serão relacionadas dentro do período destinado a pesquisa.


[1] De acordo com a autora, o temo tornou-se um “ovo de Colombo conceitual” ao introduzir no contexto brasileiro a noção norte-americana de gay friendly e permitir que pessoas que não se identifiquem a partir de identidades como gays e lésbicas, possam transitar por espaços e consumir produtos voltados ao público homossexual (FACCHINI, 2003, p.120).
[2] Termo usado por autores e grupos de teatro para representar personagens que ficaram marcados na história do estado. O SATED-ES realizava apresentações de performances no Parque Moscoso nos festejos de aniversário da Cidade com artistas representando ícones da história capixaba conhecidos pela história oral.

O Teatro como Forma de Ação Política e de Construção de Identidades


O Teatro como Forma de Ação Política e de Construção de Identidades

Em todo o mundo, o teatro sempre esteve presente com diversos fins, tendo impacto nas relações políticas de dominação e poder, bem como em processos de construção de identidades. No Espírito Santo não foi diferente. O advento da colonização teve como uma de suas marcas artísticas a presença dos padres jesuítas, em especial José de Anchieta, como grande provedor das artes cênicas como meio de catequizar os nativos. Não era apenas uma mera diversão, pois os espetáculos - que segundo historiadores eram marcados pela “baixa qualidade e o amadorismo dos atores” (FARIA, 1999, p. 343) -  tinham a função de instruir os povos nativos sobre os regimes religiosos, sociais e políticos dos colonizadores.

Com a ascensão de uma burguesia local e a falta de práticas de diversão, o teatro, já em meados do século XIX, ganha nova roupagem. A vinda da família imperial e as obras nacionalistas trouxeram com eles o romantismo[1] europeu. O teatro romântico veio associado a técnicas de palco e padrões sociológicos e organizacionais[2], causando grande impacto na hermenêutica[3]. Enquanto as técnicas aristotélicas[4] previam padrões de imitação, o romantismo dava certa liberdade de expressão aos atores, uma linguagem mais natural e coloquial a um estilo teatral que acabava de nascer. O drama permitia a mistura do belo e do feio, da dor e do riso, dos problemas da aristocracia e do povo, de elementos da tragédia e da comédia (GAMA, 1987, p.17). Os grupos de teatro começaram a se formar no estado e as performances dos atores desses grupos incitou o público a pensamentos nacionalistas, patrióticos e revolucionários, características marcantes desse período (BETHOLD, 2010, p.429).

Não obstante a formação dos primeiros grupos de teatro não religiosos no estado, a partir de meados do século XX a cena teatral capixaba passa a enfrentar uma política de restrições com a incursão do golpe militar e do período de ditadura que passou a reger a nação. Não diferente do restante do país, também no Espírito Santo sofre-se com as censuras impostas. Artistas que marcaram o povo capixaba de alguma forma, foram impelidos a seguir regras nacionais, mas não se dobraram totalmente aos atos de censura. A escola de Balé contemporâneo do Praia tênis Club, orientada por Denise Marques, por exemplo, produzia espetáculos de dança amadores onde a sensualidade era tema recorrente. Participei do grupo nos anos finais da década de 1980. Não aconteceu uma produção para temporada, apenas apresentávamos para familiares e outros alunos. Já o Grupo Teatral “Garotos da Ilha”, dirigidos por Milson Henriques, teve espetáculos censurados e até mesmo interferidos em sua execução por censores que assistiam no meio do público. Outro exemplo é o espetáculo “De Setembro a Setembrino”, cuja apresentação no Theatro Carlos Gomes foi impedida com intervenção policial no meio de sua apresentação (GAZETA, 2014). Ricardo Barnabé, fundador do Grupo Mutirão de Teatro, em suas montagens de textos de Glauber Rocha, chegou a ser convidado a desistir da montagem. Durante a apresentação de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, o diretor interrompeu os ensaios e se mudou para o interior da Bahia, de onde apenas em 2003 concluiu sua montagem e em 2004 fez temporada no Centro Cultural Edith Bulhões, na cidade de Vitória e no Teatro Municipal de Vila Velha.  
Recém-chegado a nossas terras, o artista carioca Milson Henriques[5] inicia a proposta de formação de grupos de teatro que, apesar de poucos registros, ainda mantém sua marca na memória de muitos cidadãos de meia idade hoje. Ricardo Barnabé[6], Amylton de Almeida[7], Wilson Nunes[8], nomes que fizeram história no teatro, no jornalismo e na TV que tiveram grande influência na vida de muitos capixabas.
Muitas obras foram criadas durante o período do Regime Militar, muitas apresentadas e muitas outras censuradas. O teatro Carlos Gomes foi berço de espetáculos teatrais e peças musicais fantásticas, românticas, realistas e infantis. Nasce na capital uma coordenação de cultura e o estado floresce em arte, mesmo que regulada pelos parâmetros ditatoriais, e frutifica diversos nomes de artistas e grupos que se mantiveram e ainda se mantém vivos e atuantes no cenário cultural e artístico.
Nesse contexto, diversas boates e bares ficaram famosos entre aqueles que buscavam diversão, principalmente entre a elite burguesa, tendo em sua maioria caráter heteronormativo. Shows de artistas nacionais e internacionais invadiram o cenário do turismo e da diversão na capital capixaba. Com o fim do período de repressão e o surgimento de uma gestão política democrática liberta de amarras militares, surge na parte nobre da capital aquela que será objeto dessa pesquisa, a Boate Eros, que se consagraria como ponto de encontro gay do estado.

Essa breve revisão da história do teatro capixaba indica que as performances teatrais podem estar atreladas a projetos políticos e a processos de formação de identidades. É necessário, portanto, refletir teoricamente e conceitualmente sobre a performance teatral.

Desde a presença da representação nos ritos de clamor ao deus sol, nos ritos de purificação e nos sacrifícios humanos da pré-história, na interpretação das tragédias, comédias e sátiras aproximando os deuses gregos das decisões dos homens, a purgação da Idade Média, as tragicomédias renascentistas, os conflitos iluministas, todos esses períodos dependiam inclusivamente das performances do ator que encenava cada papel para que as intenções das cenas tivessem a interpretação desejada por seus autores para o público. Sua apresentação inclinava o espetáculo ao entendimento que ele intencionava. Em muitos momentos, o próprio texto já trazia uma mensagem implícita nas palavras, já em outros cabia ao ator transmiti-la através de sua performance.

Bonfitto proclama esse momento que se passa entre a pessoa do ator e seu ato de performance como aquele em que as mudanças, entre o ator no seu cotidiano e o ator na iminência da performance, podem surgir (FABIÃO, 2013). Em sua obra, o autor analisa diferentes atores e suas performances, tanto como expectador quanto como participante. Ele diferencia o “ator” do “performer” não como pessoas diferentes, mas como atitudes diferentes em cada um de nós. O ator segue regras de semiótica e estética que definem a arte teatral (STANISLAVISKI, 1999; 2001) enquanto o performer possui uma liberdade estética de improviso no momento de sua atuação. O ator, no ato de sua preparação, pratica exercícios concretizados pela estética do fazer teatral que envolvem o corpo atento e a escuta. A escuta proporciona um exercício de percepção do texto relativo ao momento de seu estudo, ao local, ao horário e ao estado de espírito do ator (BONFITTO, 2013, p. 58). Nessa escuta, cabe um processo de interpretação e representação ao qual Bonfitto narra como performance. A partir dessa literatura, conclui-se que se o teatro é uma forma de politizar, o ator é o agente e a performance é a forma da ação.

Bonfitto (2013) revela em seu ensaio “Entre o Ator e o Performer” que as atividades artísticas performáticas sugerem muito mais que atividades de diversão: são formas de transformação do mundo. Completa ainda sugerindo que o teatro tem uma função de conscientização política e social para seus artistas e para o público. Certas performances extrapolam os limites da semiótica e da hermenêutica, constituindo um ato político, contestando noções pré-estabelecidas pela sociedade e atitudes de desprezo ou preconceito a partir da realização de seu trabalho (BONFITTO, 2013).

Em seu livro “Entre o Ator e o Performer”, Bonfitto (2013) passa por experimentos únicos para ele, tratando da relação entre as peças de teatro e as performances, que compreendo como que em peças de teatro o ator pode fazer suas performances, porém uma performance não é uma peça teatral, sendo nos dois casos espetáculos cênicos, e narrando seus registros de várias performances e artistas emblemáticos. Em certos momentos o autor participa enquanto performer convidado para os trabalhos ou concluindo pesquisas. A partir desse trabalho de campo onde Bonfitto se coloca no lugar do expectador em alguns momentos e em outros ele é o próprio ator-performer, o autor traz diversas perspectivas e proposições sobre essa arte. Ao longo desse livro, o autor propõe novos conceitos e discussões sobre antigos temas, trazendo diversas perspectivas e proposições sobre essa arte. Em todo o debate proposto no livro, percebe-se as implicações que o trabalho de atuação e de performances realizadas dentro de suas apresentações reflete no público e vice-versa. Além disso, suas análises demonstram que os conflitos existentes nos textos não eram meramente literários, mas possuíam uma carga de análises sociológicas, antropológicas e políticas (BONFITTO, 2013, p.65), pois traziam reflexões sobre problemas sociais e políticos do período em que aconteciam, marcando a presença do corpo na ação do espetáculo. O corpo do ator acaba tendo uma importância maior que o próprio texto.

Outro conceito teatral fundamental para essa pesquisa é o das “máscaras”, conceito que Eugenio Barba e Nicola Saravense (1995) descrevem como quando o ator define uma estética ou escola teatral a seguir e se utiliza de suas ações cotidianas para preencher lacunas de expressões, sentimentos e sensações dadas ao personagem interpretado. Durante os shows artísticos e as performances, cada ator-performer constrói seu personagem a partir de experimentos do seu dia-a-dia. Sua performatividade diária faz parte da pesquisa e do exercício praticado pelo artista na montagem do seu trabalho. Conforme indicado na introdução desse trabalho, é possível observar que as relações entre as identidades sociais dos atores e as máscaras por eles utilizadas pode variar significativamente em cada caso.
No processo de construção de máscaras, a escolha da roupa, da música, da maquiagem diferencia artistas pelos padrões escolhidos. O corpo dos artistas se torna um instrumento de transformação social. A partir de seu corpo, independente de sexo ou de sua identidade, o artista questiona algo ou incita a algo. Os trabalhos apresentados por esses corpos artísticos são marcados por desejos e ansiedades, tanto do próprio artista como do público. A montagem da cena através da escolha de uma música ou de outra politicamente questionadora é parte da construção de um ou de outro personagem (STANISLAVISKI, 1999; 2001). Assim, por meio da formação dessas máscaras, entendo que cada transformista e cada ator inspira e auxilia na construção do ser, tanto dele mesmo como daquele que o assiste. O ato teatral é muito mais que uma suposição artística, ele se torna um potencializador político e social, transformador de ideais, pensamentos, comportamentos e identidades.


[1] A escola romântica ou romantismo é o período artístico que teve início no século XIX em contraposição ao neoclassicismo. (BERTHOLD, 2010)
[2] São os padrões literários de organização do texto teatral que seguiam normas de referências de personagens e de conflitos da trama na história contada.
[3] Hermenêutica é a ciência da interpretação de texto ou arte de interpretar
[4] As técnicas aristotélicas vêm de Aristóteles, filósofo grego que definiu regras para o fazer teatral.
[5] Gazeta online: Milson, mestre sensível e mordaz, 2016.
[6] Jequié Notícias, 2014;
[7] Jornal A Gazeta: Caderno cinema, 2018
[8] Tribuna Online: caderno cidades, 2019

Sociedade NÃO TÃO Secreta das bYXXXas



Ao longo da década de 1980 na cidade de Vitória, grande parte dos grupos de teatro em atividade no período tinha em sua composição ativistas gays e simpatizantes. Em sua maioria conhecidos, de alguma forma, na região e muitos até mesmo no estado. As manifestações artísticas, em especial o teatro, eram amplamente divulgadas nos jornais de grande circulação, principalmente porque ocupantes dos grupos teatrais faziam parte do quadro de jornalistas. Os artistas do período tinham ocupações nos ramos da comunicação, o que facilitava o acesso aos veículos midiáticos. Wilson Nunes, Milson Henriques, Alvarito Mendes Filho, Milton Neves eram todos funcionários das emissoras de rádio e televisão da capital e responsáveis por grupos de teatro e espetáculos em cartaz. No andar de cima da Boate Eros se localizava o ponto de encontro desses e outros grupos de teatro.
Situada em uma das ruas do tão visitado Parque Moscoso, a boate tornou-se local de encontros amorosos e de outras formas de sociabilidade da comunidade homossexual desde a sua fundação no final dos anos 1980 até seu fechamento em meados da primeira metade dos anos 2000. Para entender a importância desse espaço, é necessário compreender que o contexto político brasileiro a partir de meados dos anos 1980 – marcado pelo processo de abertura democrática - é contraditório. Por um lado, há pessoas tentando se livrar de todos os maus agouros da ditadura, denunciando ou sofrendo suas consequências. Por outro lado, há outras pessoas recordando saudosas da disciplina que mantinha a “ordem” e os “bons costumes”, colocando cada tipo de cidadão em seu lugar social e mantendo uma forçada disciplina. Dentro da Boate Eros, porém, os preconceitos eram substituídos por uma maior liberdade. Apesar de toda repressão política e social e da grande incidência de preconceito, apesar das batidas policiais recorrentes na boate, o local ainda acolhia a diversidade artística como em nenhum outro lugar.
O movimento gay da época ainda estava em fase inicial de organização na capital capixaba. Em sua maioria, eram grupos que satirizavam as questões políticas, mas não tinham organização social como base além do grupo de teatro e das performances transformistas individuais. Embora a diversão pessoal fosse um importante motivador para esses grupos de teatro, seus artistas também estavam intuídos do desejo de apresentar para o público uma realidade vivida por muitos deles dentro de suas vidas. Esses grupos aparentemente não tinham como intenção inicial transformar concepções sociais mais amplas sobre gênero e sexualidade, apenas querendo compartilhar que as orientações sexuais diversas estão em qualquer lugar. Apesar dessa possível ausência de intencionalidade, uma transformação política que está “entre” o mundo real e o ficcional ocorre naquele período com o fortalecimento das identidades gay.  
Essa pesquisa trata do tema da formação da identidade gay a partir de um recorte específico, feito na capital do estado do Espírito Santo (ES), entre os frequentadores da Boate Eros, local onde aconteciam, além das noitadas de discoteca, shows de transformistas e apresentação de espetáculos de teatro, em sua essência, dentro da temática gay. Nesse local, o ativismo era forte, frequente e recorrente, o que nos leva a crer que a “performance artística”, que segundo Bonfitto (2013) é uma forma potente de engajamento social e político, tem sua parcela de influência na formação da identidade gay de seus frequentadores. Dessa maneira, sugerimos que a construção de identidades gay e o enfrentamento a discriminação por orientação sexual no âmbito familiar e na comunidade eram em alguma medida embasados nas relações sociais que se fortaleciam a partir da participação desses indivíduos nas atividades da boate, seja como ativistas artistas, seja como ativistas públicos.
Exemplos de performances artísticas fortemente engajadas e relacionadas às identidades gay, podem ser observados em espetáculos teatrais que englobavam tais temas. Seus textos eram fictícios, contados em forma de comédia, usadas para divertir um público que vivia situações aproximadas daquelas contadas no texto. Muitas situações refletiam vontades, mas não necessariamente uma realidade. Dois exemplos distintos foram espetáculos incentivados por Wilson Nunes, artista ativista que tinha muita influência entre jovens iniciantes no teatro. Dentre outros nomes, Wilson Nunes foi um grande propagador das artes performáticas e teatrais dentro da Boate Eros e no mercado artístico da região. Sua personagem Najla Paquetá era a apresentadora dos eventos que aconteciam na boate além de dublar e cantar ao vivo músicas das musas Clara Nunes, Elis Regina e Alcione. Em sua carreira artística participou de inúmeras montagens teatrais, sendo a primeira um espetáculo que ficou conhecido pelo mundo e provavelmente deu-lhe o impulso para a consagração na classe artística teatral. A montagem do espetáculo “Os gatos do beco” de autoria de Alvarito Mendes Filho, não tinha relações com a comunidade gay ou o ambiente da boate além do fato de que os ensaios e encontros artísticos acontecerem na mesma em horários em que não funcionava. Outros textos do autor, no entanto, estavam fortemente relacionados à identidade gay.
Um texto de autoria do próprio Wilson, “Minha Sogra 44”, ilustrava bem os relacionamentos hétero e homossexuais dentro de um mesmo ambiente, que como faziam parte de uma mesma família, se aceitavam de forma natural e normal. Mas ao decorrer da história entra em cena um personagem heteronormativo que não estava “acostumado” com as situações daquela família “diferente” dos padrões da sociedade daquela época.
Outro espetáculo, que fez tanto sucesso a ponto de se manter em cartaz durante muitos anos tendo várias sequências, foi “A Perereca da Marly”, escrita por Milson Henriques, que narra a história da personagem de tirinha de jornal criada pelo próprio Milson, cartunista de jornal de grande circulação no estado. Os personagens principais do espetáculo eram mulheres, mas os atores eram homens, que ficaram consagrados e conhecidos pelas personagens. Marly, representada por José Luiz Gobbi, chegou a ser ala de escola de samba no estado. Em decorrência do espetáculo, Gobbi ficou mais conhecido como Marly do que como qualquer outro personagem que ele tenha feito (se fez, ficou esquecido).
Cabe mencionar ainda, um terceiro exemplo, o espetáculo “Por Favor Matem Minha Empregada” escrito pelo servidor federal Edilson Pedrini, que tinha como estrela o ator Wilson Nunes, que se travestia da personagem Melanie Marques. A personagem era conhecida na Boate Eros como aquela que assumia o controle das apresentações da casa construindo uma performance que durava a noite inteira chamando os shows, apresentando números performáticos (muitas vezes cantado ao vivo) que traziam para a casa um grande número de expectadores que já haviam se tornado seus fãs.
Além dos espetáculos teatrais, a Boate Eros contava, ainda, com espetáculos de transformistas. Os shows de dublagem agitavam o público de várias maneiras. Alguns dos transformistas traziam em seu repertório músicas do pop internacional da moda. Divertiam a elite burguesa com a interpretação das músicas que faziam parte de seu repertório cotidiano. Outros reviviam grandes clássicos da música romântica internacional. Alguns, ainda, levavam para o palco os clássicos da MPB e do samba, músicas que fizeram uma geração protestar, lutar por direitos e criar movimentos que ficaram marcados por essas canções.
Suas performances criticavam ou enalteciam pensamentos sociopolíticos, desejos e anseios daquele e de outros grupos da sociedade brasileira. Um trabalho que ia muito além de uma dublagem musical. Uma performance que sugeria, através de seu comportamento corporal, de seu figurino, de sua maquiagem, dentre outros elementos, um ato de revolta, de insubordinação e de transformação. Alguns performers transformistas da boate foram consagrados tanto na comunidade gay quanto na sociedade em geral, seja nas profissões até então cabíveis apenas para homossexuais – cabeleireiros, maquiadores, atores – seja no empreendedorismo, no ativismo em movimentos sociais ou na política institucional. Nomes como Tarsilla Open, Bianca Castelli, Denner, Lauren Dollar, Mery Ofidê Relpi, Dayse Lilica, Miss Linda, Pâmela Castilho e Chica Chiclete foram marcantes na boate e são personalidades muito conhecidas hoje no cenário capixaba.
Ao subir no palco, essas artistas vestem uma “máscara”[1] que pressupõe estudos e entendimentos daquele personagem que ele está representando. Nos shows da Boate Eros, cada ator ou performer se entrega de maneira única. Os transformistas em suas performances são cada um, a sua maneira, personagens diferentes. As relações entre suas personagens e suas identidades sociais fora do âmbito da Boate Eros eram diversas.
Exemplos são Bianca Castelli, transformista, mulher trans, maquiadora. Suas experiências na sociedade são colocadas no palco a partir de seus talentos e suas performances externas. Tudo influencia na sua composição e na diferenciação de seu personagem aos dos outros. Bianca se apresenta como Bianca e é conhecida na sociedade como Bianca. Diferente, mas não distante, temos as performances de Chica Chiclete. A personagem é vivida pelo transformista conhecido fora do âmbito da boate como Francisco Spalla. O empresário chegou a ocupar cadeira no legislativo. Sua eleição se deu a partir da fama e do sucesso que Chica tinha na comunidade. Mas quem assumiu o cargo foi Francisco. Já Ângela Jackson era atriz muito mais que transformista. Suas performances não eram só os shows de dublagem. Ela cantava, contava com um coro de dançarinos e criava cenas teatrais no meio do show. Ângela é animadora de festas e só nas festas tem esse nome. Em sua vida social, fora do mundo das artes, Rodrigo é homem, gay e trabalha em repartição pública, sem maquiagem, sem saltos, sem peruca.
Analisando esse cenário, essa pesquisa está teoricamente fundamentada em uma revisão da literatura sobre a história do movimento LGBT no Brasil e sobre o conceito de “performance teatral” de Matteo Bonfitto, este último que trata do campo artístico. Do ponto de vista metodológico, essa investigação buscará descrever as performances teatrais em espetáculos teatrais e de transformistas ocorridos nessa boate no período de sua existência (final dos anos 1980 e início dos anos 2000) buscando compreender como essas performances tensionaram identidades de gênero e contribuíram para a formação da identidade gay de seus artistas e frequentadores. Assim, o problema de pesquisa que esse projeto propõe pode ser resumido da seguinte forma: quais são as relações entre as performances teatrais realizadas em espetáculos teatrais e shows de transformistas na Boate Eros e a formação da identidade gay na Grande Vitória entre o final da década de 1980 e o início dos anos 2000?
Essa pesquisa se mostra viável, já que o acesso a entrevistas é fácil devido à proximidade do pesquisador com essas pessoas. Fui frequentador assíduo da boate, principalmente nos anos de 1990. Como possuía um ambiente gay próximo à boate, a frequência era fácil. Participava da sociedade sem lucros de uma sauna que era um ponto de “esquenta” para alguns frequentadores da boate. Fazia parte de um grupo de teatro, mas que não tinha apresentações na boate, porém sempre estava presente enquanto expectador. Possuía uma ligação muito forte com os artistas que faziam parte, tanto do grupo de teatro, como das transformistas que executavam os shows da noite. Durante um tempo participei dos concursos de “Garoto Eros” e auxiliei na produção de alguns dos shows de transformistas.
Ademais, existe um acervo particular audiovisual de muitas noites da Boate Eros que registraram desde a preparação da noite, os shows, alguns espetáculos de teatro até a despedida da noite, com luzes acendendo, sol nascendo e muitos depoimentos de gays e travestis que participaram enquanto público, atores ou transformistas que fizeram os shows da casa. Além do trabalho acadêmico, essa pesquisa tem como objetivo, ainda, fundamentar a construção de um espetáculo teatral que irá ilustrar esse período histórico.


[1] Máscara como conceito que Eugenio Barba descreve como quando o ator define uma estética ou escola teatral a seguir e se utiliza de suas ações cotidianas para preencher lacunas de expressões, sentimentos e sensações dadas ao personagem interpretado (BARBA. 1995).

terça-feira, 26 de maio de 2020

Primeira Aula do curso de Teatro On Line

primeira aula do projeto teatro conectados da vila da Secretaria Municipal de Educação de Vila Velha com Anderson Lima

esse vídeo foi dividido e publicado em quatro aulas no YouTube... então a próxima postagem já vai ser a aula 5

Convite Curso de Teatro On Line

Convite para participar do curso gratuito de Teatro On Line do Programa Conectados da Vila da Secretaria de Cultura de Vila Velha com Anderson Lima (eu)