quarta-feira, 27 de maio de 2020

Sociedade NÃO TÃO Secreta das bYXXXas



Ao longo da década de 1980 na cidade de Vitória, grande parte dos grupos de teatro em atividade no período tinha em sua composição ativistas gays e simpatizantes. Em sua maioria conhecidos, de alguma forma, na região e muitos até mesmo no estado. As manifestações artísticas, em especial o teatro, eram amplamente divulgadas nos jornais de grande circulação, principalmente porque ocupantes dos grupos teatrais faziam parte do quadro de jornalistas. Os artistas do período tinham ocupações nos ramos da comunicação, o que facilitava o acesso aos veículos midiáticos. Wilson Nunes, Milson Henriques, Alvarito Mendes Filho, Milton Neves eram todos funcionários das emissoras de rádio e televisão da capital e responsáveis por grupos de teatro e espetáculos em cartaz. No andar de cima da Boate Eros se localizava o ponto de encontro desses e outros grupos de teatro.
Situada em uma das ruas do tão visitado Parque Moscoso, a boate tornou-se local de encontros amorosos e de outras formas de sociabilidade da comunidade homossexual desde a sua fundação no final dos anos 1980 até seu fechamento em meados da primeira metade dos anos 2000. Para entender a importância desse espaço, é necessário compreender que o contexto político brasileiro a partir de meados dos anos 1980 – marcado pelo processo de abertura democrática - é contraditório. Por um lado, há pessoas tentando se livrar de todos os maus agouros da ditadura, denunciando ou sofrendo suas consequências. Por outro lado, há outras pessoas recordando saudosas da disciplina que mantinha a “ordem” e os “bons costumes”, colocando cada tipo de cidadão em seu lugar social e mantendo uma forçada disciplina. Dentro da Boate Eros, porém, os preconceitos eram substituídos por uma maior liberdade. Apesar de toda repressão política e social e da grande incidência de preconceito, apesar das batidas policiais recorrentes na boate, o local ainda acolhia a diversidade artística como em nenhum outro lugar.
O movimento gay da época ainda estava em fase inicial de organização na capital capixaba. Em sua maioria, eram grupos que satirizavam as questões políticas, mas não tinham organização social como base além do grupo de teatro e das performances transformistas individuais. Embora a diversão pessoal fosse um importante motivador para esses grupos de teatro, seus artistas também estavam intuídos do desejo de apresentar para o público uma realidade vivida por muitos deles dentro de suas vidas. Esses grupos aparentemente não tinham como intenção inicial transformar concepções sociais mais amplas sobre gênero e sexualidade, apenas querendo compartilhar que as orientações sexuais diversas estão em qualquer lugar. Apesar dessa possível ausência de intencionalidade, uma transformação política que está “entre” o mundo real e o ficcional ocorre naquele período com o fortalecimento das identidades gay.  
Essa pesquisa trata do tema da formação da identidade gay a partir de um recorte específico, feito na capital do estado do Espírito Santo (ES), entre os frequentadores da Boate Eros, local onde aconteciam, além das noitadas de discoteca, shows de transformistas e apresentação de espetáculos de teatro, em sua essência, dentro da temática gay. Nesse local, o ativismo era forte, frequente e recorrente, o que nos leva a crer que a “performance artística”, que segundo Bonfitto (2013) é uma forma potente de engajamento social e político, tem sua parcela de influência na formação da identidade gay de seus frequentadores. Dessa maneira, sugerimos que a construção de identidades gay e o enfrentamento a discriminação por orientação sexual no âmbito familiar e na comunidade eram em alguma medida embasados nas relações sociais que se fortaleciam a partir da participação desses indivíduos nas atividades da boate, seja como ativistas artistas, seja como ativistas públicos.
Exemplos de performances artísticas fortemente engajadas e relacionadas às identidades gay, podem ser observados em espetáculos teatrais que englobavam tais temas. Seus textos eram fictícios, contados em forma de comédia, usadas para divertir um público que vivia situações aproximadas daquelas contadas no texto. Muitas situações refletiam vontades, mas não necessariamente uma realidade. Dois exemplos distintos foram espetáculos incentivados por Wilson Nunes, artista ativista que tinha muita influência entre jovens iniciantes no teatro. Dentre outros nomes, Wilson Nunes foi um grande propagador das artes performáticas e teatrais dentro da Boate Eros e no mercado artístico da região. Sua personagem Najla Paquetá era a apresentadora dos eventos que aconteciam na boate além de dublar e cantar ao vivo músicas das musas Clara Nunes, Elis Regina e Alcione. Em sua carreira artística participou de inúmeras montagens teatrais, sendo a primeira um espetáculo que ficou conhecido pelo mundo e provavelmente deu-lhe o impulso para a consagração na classe artística teatral. A montagem do espetáculo “Os gatos do beco” de autoria de Alvarito Mendes Filho, não tinha relações com a comunidade gay ou o ambiente da boate além do fato de que os ensaios e encontros artísticos acontecerem na mesma em horários em que não funcionava. Outros textos do autor, no entanto, estavam fortemente relacionados à identidade gay.
Um texto de autoria do próprio Wilson, “Minha Sogra 44”, ilustrava bem os relacionamentos hétero e homossexuais dentro de um mesmo ambiente, que como faziam parte de uma mesma família, se aceitavam de forma natural e normal. Mas ao decorrer da história entra em cena um personagem heteronormativo que não estava “acostumado” com as situações daquela família “diferente” dos padrões da sociedade daquela época.
Outro espetáculo, que fez tanto sucesso a ponto de se manter em cartaz durante muitos anos tendo várias sequências, foi “A Perereca da Marly”, escrita por Milson Henriques, que narra a história da personagem de tirinha de jornal criada pelo próprio Milson, cartunista de jornal de grande circulação no estado. Os personagens principais do espetáculo eram mulheres, mas os atores eram homens, que ficaram consagrados e conhecidos pelas personagens. Marly, representada por José Luiz Gobbi, chegou a ser ala de escola de samba no estado. Em decorrência do espetáculo, Gobbi ficou mais conhecido como Marly do que como qualquer outro personagem que ele tenha feito (se fez, ficou esquecido).
Cabe mencionar ainda, um terceiro exemplo, o espetáculo “Por Favor Matem Minha Empregada” escrito pelo servidor federal Edilson Pedrini, que tinha como estrela o ator Wilson Nunes, que se travestia da personagem Melanie Marques. A personagem era conhecida na Boate Eros como aquela que assumia o controle das apresentações da casa construindo uma performance que durava a noite inteira chamando os shows, apresentando números performáticos (muitas vezes cantado ao vivo) que traziam para a casa um grande número de expectadores que já haviam se tornado seus fãs.
Além dos espetáculos teatrais, a Boate Eros contava, ainda, com espetáculos de transformistas. Os shows de dublagem agitavam o público de várias maneiras. Alguns dos transformistas traziam em seu repertório músicas do pop internacional da moda. Divertiam a elite burguesa com a interpretação das músicas que faziam parte de seu repertório cotidiano. Outros reviviam grandes clássicos da música romântica internacional. Alguns, ainda, levavam para o palco os clássicos da MPB e do samba, músicas que fizeram uma geração protestar, lutar por direitos e criar movimentos que ficaram marcados por essas canções.
Suas performances criticavam ou enalteciam pensamentos sociopolíticos, desejos e anseios daquele e de outros grupos da sociedade brasileira. Um trabalho que ia muito além de uma dublagem musical. Uma performance que sugeria, através de seu comportamento corporal, de seu figurino, de sua maquiagem, dentre outros elementos, um ato de revolta, de insubordinação e de transformação. Alguns performers transformistas da boate foram consagrados tanto na comunidade gay quanto na sociedade em geral, seja nas profissões até então cabíveis apenas para homossexuais – cabeleireiros, maquiadores, atores – seja no empreendedorismo, no ativismo em movimentos sociais ou na política institucional. Nomes como Tarsilla Open, Bianca Castelli, Denner, Lauren Dollar, Mery Ofidê Relpi, Dayse Lilica, Miss Linda, Pâmela Castilho e Chica Chiclete foram marcantes na boate e são personalidades muito conhecidas hoje no cenário capixaba.
Ao subir no palco, essas artistas vestem uma “máscara”[1] que pressupõe estudos e entendimentos daquele personagem que ele está representando. Nos shows da Boate Eros, cada ator ou performer se entrega de maneira única. Os transformistas em suas performances são cada um, a sua maneira, personagens diferentes. As relações entre suas personagens e suas identidades sociais fora do âmbito da Boate Eros eram diversas.
Exemplos são Bianca Castelli, transformista, mulher trans, maquiadora. Suas experiências na sociedade são colocadas no palco a partir de seus talentos e suas performances externas. Tudo influencia na sua composição e na diferenciação de seu personagem aos dos outros. Bianca se apresenta como Bianca e é conhecida na sociedade como Bianca. Diferente, mas não distante, temos as performances de Chica Chiclete. A personagem é vivida pelo transformista conhecido fora do âmbito da boate como Francisco Spalla. O empresário chegou a ocupar cadeira no legislativo. Sua eleição se deu a partir da fama e do sucesso que Chica tinha na comunidade. Mas quem assumiu o cargo foi Francisco. Já Ângela Jackson era atriz muito mais que transformista. Suas performances não eram só os shows de dublagem. Ela cantava, contava com um coro de dançarinos e criava cenas teatrais no meio do show. Ângela é animadora de festas e só nas festas tem esse nome. Em sua vida social, fora do mundo das artes, Rodrigo é homem, gay e trabalha em repartição pública, sem maquiagem, sem saltos, sem peruca.
Analisando esse cenário, essa pesquisa está teoricamente fundamentada em uma revisão da literatura sobre a história do movimento LGBT no Brasil e sobre o conceito de “performance teatral” de Matteo Bonfitto, este último que trata do campo artístico. Do ponto de vista metodológico, essa investigação buscará descrever as performances teatrais em espetáculos teatrais e de transformistas ocorridos nessa boate no período de sua existência (final dos anos 1980 e início dos anos 2000) buscando compreender como essas performances tensionaram identidades de gênero e contribuíram para a formação da identidade gay de seus artistas e frequentadores. Assim, o problema de pesquisa que esse projeto propõe pode ser resumido da seguinte forma: quais são as relações entre as performances teatrais realizadas em espetáculos teatrais e shows de transformistas na Boate Eros e a formação da identidade gay na Grande Vitória entre o final da década de 1980 e o início dos anos 2000?
Essa pesquisa se mostra viável, já que o acesso a entrevistas é fácil devido à proximidade do pesquisador com essas pessoas. Fui frequentador assíduo da boate, principalmente nos anos de 1990. Como possuía um ambiente gay próximo à boate, a frequência era fácil. Participava da sociedade sem lucros de uma sauna que era um ponto de “esquenta” para alguns frequentadores da boate. Fazia parte de um grupo de teatro, mas que não tinha apresentações na boate, porém sempre estava presente enquanto expectador. Possuía uma ligação muito forte com os artistas que faziam parte, tanto do grupo de teatro, como das transformistas que executavam os shows da noite. Durante um tempo participei dos concursos de “Garoto Eros” e auxiliei na produção de alguns dos shows de transformistas.
Ademais, existe um acervo particular audiovisual de muitas noites da Boate Eros que registraram desde a preparação da noite, os shows, alguns espetáculos de teatro até a despedida da noite, com luzes acendendo, sol nascendo e muitos depoimentos de gays e travestis que participaram enquanto público, atores ou transformistas que fizeram os shows da casa. Além do trabalho acadêmico, essa pesquisa tem como objetivo, ainda, fundamentar a construção de um espetáculo teatral que irá ilustrar esse período histórico.


[1] Máscara como conceito que Eugenio Barba descreve como quando o ator define uma estética ou escola teatral a seguir e se utiliza de suas ações cotidianas para preencher lacunas de expressões, sentimentos e sensações dadas ao personagem interpretado (BARBA. 1995).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Faça seu Comentário