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Teatro como Forma de Ação Política e de Construção de Identidades
Em todo o mundo, o teatro sempre esteve presente com
diversos fins, tendo impacto nas relações políticas de dominação e poder, bem
como em processos de construção de identidades. No Espírito Santo não foi
diferente. O advento da colonização teve como uma de suas marcas artísticas a
presença dos padres jesuítas, em especial José de Anchieta, como grande
provedor das artes cênicas como meio de catequizar os nativos. Não era apenas
uma mera diversão, pois os espetáculos - que segundo historiadores eram marcados pela “baixa qualidade e o amadorismo dos
atores” (FARIA, 1999, p. 343) - tinham a
função de instruir os povos nativos sobre os regimes religiosos, sociais e
políticos dos colonizadores.
Com a ascensão de uma burguesia
local e a falta de práticas de diversão, o teatro, já em meados do século XIX,
ganha nova roupagem. A vinda da família imperial e as obras nacionalistas trouxeram
com eles o romantismo[1]
europeu. O teatro romântico veio associado a técnicas de palco e padrões
sociológicos e organizacionais[2],
causando grande impacto na hermenêutica[3].
Enquanto as técnicas aristotélicas[4]
previam padrões de imitação, o romantismo dava certa liberdade de expressão aos
atores, uma linguagem mais natural e coloquial a um estilo teatral que acabava
de nascer. O drama permitia a mistura do belo e do feio, da dor e do riso, dos
problemas da aristocracia e do povo, de elementos da tragédia e da comédia
(GAMA, 1987, p.17). Os grupos de teatro começaram a se formar no estado e as
performances dos atores desses grupos incitou o público a pensamentos
nacionalistas, patrióticos e revolucionários, características marcantes desse
período (BETHOLD, 2010, p.429).
Não obstante a formação dos primeiros grupos de teatro
não religiosos no estado, a partir de meados do século XX a cena teatral
capixaba passa a enfrentar uma política de restrições com a incursão do golpe
militar e do período de ditadura que passou a reger a nação. Não diferente do
restante do país, também no Espírito Santo sofre-se com as censuras impostas. Artistas
que marcaram o povo capixaba de alguma forma, foram impelidos a seguir regras
nacionais, mas não se dobraram totalmente aos atos de censura. A escola de Balé
contemporâneo do Praia tênis Club, orientada por Denise Marques, por exemplo,
produzia espetáculos de dança amadores onde a sensualidade era tema recorrente.
Participei do grupo nos anos finais da década de 1980. Não aconteceu uma
produção para temporada, apenas apresentávamos para familiares e outros alunos.
Já o Grupo Teatral “Garotos da Ilha”, dirigidos por Milson Henriques, teve
espetáculos censurados e até mesmo interferidos em sua execução por censores
que assistiam no meio do público. Outro exemplo é o espetáculo “De Setembro a
Setembrino”, cuja apresentação no Theatro Carlos Gomes foi impedida com
intervenção policial no meio de sua apresentação (GAZETA, 2014). Ricardo
Barnabé, fundador do Grupo Mutirão de Teatro, em suas montagens de textos de
Glauber Rocha, chegou a ser convidado a desistir da montagem. Durante a
apresentação de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, o diretor interrompeu os
ensaios e se mudou para o interior da Bahia, de onde apenas em 2003 concluiu
sua montagem e em 2004 fez temporada no Centro Cultural Edith Bulhões, na
cidade de Vitória e no Teatro Municipal de Vila Velha.
Recém-chegado a nossas terras, o artista carioca Milson
Henriques[5]
inicia a proposta de formação de grupos de teatro que, apesar de poucos
registros, ainda mantém sua marca na memória de muitos cidadãos de meia idade
hoje. Ricardo Barnabé[6], Amylton
de Almeida[7],
Wilson Nunes[8],
nomes que fizeram história no teatro, no jornalismo e na TV que tiveram grande
influência na vida de muitos capixabas.
Muitas obras foram criadas durante o período do Regime
Militar, muitas apresentadas e muitas outras censuradas. O teatro Carlos Gomes
foi berço de espetáculos teatrais e peças musicais fantásticas, românticas,
realistas e infantis. Nasce na capital uma coordenação de cultura e o estado
floresce em arte, mesmo que regulada pelos parâmetros ditatoriais, e frutifica
diversos nomes de artistas e grupos que se mantiveram e ainda se mantém vivos e
atuantes no cenário cultural e artístico.
Nesse contexto, diversas boates e bares ficaram famosos
entre aqueles que buscavam diversão, principalmente entre a elite burguesa,
tendo em sua maioria caráter heteronormativo. Shows de artistas nacionais e
internacionais invadiram o cenário do turismo e da diversão na capital
capixaba. Com o fim do período de repressão e o surgimento de uma gestão
política democrática liberta de amarras militares, surge na parte nobre da
capital aquela que será objeto dessa pesquisa, a Boate Eros, que se consagraria
como ponto de encontro gay do estado.
Essa breve revisão da história do
teatro capixaba indica que as performances teatrais podem estar atreladas a
projetos políticos e a processos de formação de identidades. É necessário,
portanto, refletir teoricamente e conceitualmente sobre a performance teatral.
Desde a presença da representação
nos ritos de clamor ao deus sol, nos ritos de purificação e nos sacrifícios
humanos da pré-história, na interpretação das tragédias, comédias e sátiras
aproximando os deuses gregos das decisões dos homens, a purgação da Idade Média,
as tragicomédias renascentistas, os conflitos iluministas, todos esses períodos
dependiam inclusivamente das performances do ator que encenava cada papel para
que as intenções das cenas tivessem a interpretação desejada por seus autores
para o público. Sua apresentação inclinava o espetáculo ao entendimento que ele
intencionava. Em muitos momentos, o próprio texto já trazia uma mensagem
implícita nas palavras, já em outros cabia ao ator transmiti-la através de sua
performance.
Bonfitto proclama esse momento que
se passa entre a pessoa do ator e seu ato de performance como aquele em que as
mudanças, entre o ator no seu cotidiano e o ator na iminência da performance,
podem surgir (FABIÃO, 2013). Em sua obra, o autor analisa diferentes atores e
suas performances, tanto como expectador quanto como participante. Ele
diferencia o “ator” do “performer” não como pessoas diferentes, mas como
atitudes diferentes em cada um de nós. O ator segue regras de semiótica e
estética que definem a arte teatral (STANISLAVISKI, 1999; 2001) enquanto o
performer possui uma liberdade estética de improviso no momento de sua atuação.
O ator, no ato de sua preparação, pratica exercícios concretizados pela
estética do fazer teatral que envolvem o corpo atento e a escuta. A escuta
proporciona um exercício de percepção do texto relativo ao momento de seu
estudo, ao local, ao horário e ao estado de espírito do ator (BONFITTO, 2013,
p. 58). Nessa escuta, cabe um processo de interpretação e representação ao qual
Bonfitto narra como performance. A partir dessa literatura, conclui-se que se o
teatro é uma forma de politizar, o ator é o agente e a performance é a forma da
ação.
Bonfitto
(2013) revela em seu ensaio “Entre o Ator e o Performer” que as atividades
artísticas performáticas sugerem muito mais que atividades de diversão: são
formas de transformação do mundo. Completa ainda sugerindo que o teatro tem uma
função de conscientização política e social para seus artistas e para o
público. Certas performances extrapolam os limites da semiótica e da
hermenêutica, constituindo um ato político, contestando noções
pré-estabelecidas pela sociedade e atitudes de desprezo ou preconceito a partir
da realização de seu trabalho (BONFITTO, 2013).
Em seu livro “Entre o Ator e o
Performer”, Bonfitto (2013) passa por experimentos únicos para ele, tratando da
relação entre as peças de teatro e as performances, que compreendo como que em
peças de teatro o ator pode fazer suas performances, porém uma performance não
é uma peça teatral, sendo nos dois casos espetáculos cênicos, e narrando seus
registros de várias performances e artistas emblemáticos. Em certos momentos o
autor participa enquanto performer convidado para os trabalhos ou concluindo
pesquisas. A partir desse trabalho de campo onde Bonfitto se coloca no lugar do
expectador em alguns momentos e em outros ele é o próprio ator-performer, o
autor traz diversas perspectivas e proposições sobre essa arte. Ao longo desse
livro, o autor propõe novos conceitos e discussões sobre antigos temas,
trazendo diversas perspectivas e proposições sobre essa arte. Em todo o debate
proposto no livro, percebe-se as implicações que o trabalho de atuação e de
performances realizadas dentro de suas apresentações reflete no público e
vice-versa. Além disso, suas análises demonstram que os conflitos existentes
nos textos não eram meramente literários, mas possuíam uma carga de análises
sociológicas, antropológicas e políticas (BONFITTO, 2013, p.65), pois traziam
reflexões sobre problemas sociais e políticos do período em que aconteciam,
marcando a presença do corpo na ação do espetáculo. O corpo do ator acaba tendo
uma importância maior que o próprio texto.
Outro conceito teatral fundamental para essa pesquisa é o
das “máscaras”, conceito que Eugenio Barba e Nicola Saravense (1995) descrevem
como quando o ator define uma estética ou escola teatral a seguir e se utiliza
de suas ações cotidianas para preencher lacunas de expressões, sentimentos e
sensações dadas ao personagem interpretado. Durante os shows artísticos e as
performances, cada ator-performer constrói seu personagem a partir de
experimentos do seu dia-a-dia. Sua performatividade diária faz parte da
pesquisa e do exercício praticado pelo artista na montagem do seu trabalho.
Conforme indicado na introdução desse trabalho, é possível observar que as
relações entre as identidades sociais dos atores e as máscaras por eles
utilizadas pode variar significativamente em cada caso.
No processo de construção de máscaras, a escolha da
roupa, da música, da maquiagem diferencia artistas pelos padrões escolhidos. O
corpo dos artistas se torna um instrumento de transformação social. A partir de
seu corpo, independente de sexo ou de sua identidade, o artista questiona algo
ou incita a algo. Os trabalhos apresentados por esses corpos artísticos são marcados
por desejos e ansiedades, tanto do próprio artista como do público. A montagem
da cena através da escolha de uma música ou de outra politicamente
questionadora é parte da construção de um ou de outro personagem (STANISLAVISKI,
1999; 2001). Assim, por meio da formação dessas máscaras, entendo que cada
transformista e cada ator inspira e auxilia na construção do ser, tanto dele
mesmo como daquele que o assiste. O ato teatral é muito mais que uma suposição
artística, ele se torna um potencializador político e social, transformador de
ideais, pensamentos, comportamentos e identidades.
[1] A escola romântica ou romantismo é o
período artístico que teve início no século XIX em contraposição ao
neoclassicismo. (BERTHOLD, 2010)
[2] São os padrões literários de
organização do texto teatral que seguiam normas de referências de personagens e
de conflitos da trama na história contada.
[3] Hermenêutica é a ciência da
interpretação de texto ou arte de interpretar
[4] As técnicas aristotélicas vêm de
Aristóteles, filósofo grego que definiu regras para o fazer teatral.
[5] Gazeta online: Milson, mestre
sensível e mordaz, 2016.
[6] Jequié Notícias, 2014;
[8]
Tribuna Online: caderno cidades, 2019
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