A
última marola antes da “Primeira Onda”
LIMA,
Anderson
Muito
mais que um xingamento ou uma definição de orientação sexual, o termo bicha
determinava uma posição na escala social. Ricos ou pobres, brancos ou pretos,
homens, mulheres ou bichas, homens efeminados ou passivo na relação sexual,
aquele que é penetrado, tem “a posição social inferior da ‘mulher’...” (GREEN,
2000, PÁG. 279). Em Green (2000) é narrado que até antes dos anos de 1970 “os
homens que mantinham relação sexual com outros homens se dividiam em duas
categorias: o homem verdadeiro e a bicha”. O papel do “bofe”[1] surge como o homem ativo,
que assume o papel de liderança na relação sexual e mesmo tendo relação com
outro homem, ainda assim é considerado “homem verdadeiro” (GREEN, 2000). Até
meados do séc XX não se tem registros de bares exclusivos ao público GAY,
levando esses encontros às praças, becos, praias e banheiros públicos.
A
própria história nos apresenta civilizações antigas que consideravam
corriqueiras e normais os casos de relacionamento e até mesmo casamentos de
pessoas do mesmo sexo. Atos esses que apenas começaram a ser criminalizados no
início da era cristã, levando à pena de morte aqueles que os praticava (BOMFIM,
2011). Casos, obviamente, de extorsão política e financeira que tanto Estado
quanto Igreja se aproveitaram para ampliar seus bens e recursos. As ordens
religiosas e Estatais criaram Leis e regras como n“As Ordenações Manuelinas
(1521)... que trataram do “crime de sodomia” no Livro Quinto, Título XII, e,
igualmente, determinavam a morte pelo fogo, estabelecendo, contudo, que todos
os bens do condenado fossem confiscados à Coroa portuguesa...” (BOMFIM, 2011).
Em
detrimento as relações políticas instituem-se as relações de pré-conceitos. As
necessidades religiosas da população em geral influenciaram diretamente em
algumas segregações de relacionamento, principalmente as que se referem aos
relacionamentos do mesmo sexo.. No Brasil, apenas em 1830, uma Lei Imperial aboliria
o crime de sodomia, porém a aversão aos atos sexuais de pessoas do mesmo sexo
prevê crimes de indecência. Códigos de noções de moral, decência pública e
vadiagem eram usados na abordagem de pessoas que transgredissem as normas
sexuais aprovadas socialmente (GREEN, 2000). Através do código penal de 1890, o
preconceito se tornava indireto, promovendo a prisão daqueles que cometessem
atos de atentado público ao pudor ou o travestimento (PEREIRA, 2015).
A
procura pelas praias e locais desérticos e semidesertos se torna uma grande
rotina GAY, além dos quartos de hotel, casas de amigos e festas particulares. O
carnaval se torna então o momento do ano em que tudo é liberado, inclusive o
ato sexual “pervertido”. Green (2000) se refere ao carnaval como os quatro dias
do ano em que tudo é permitido, onde gays podiam expressar-se livremente.
Durante esse período do ano se tornam abundantes os bailes dos travestis, onde
homens vestidos de mulheres reinavam. “Nos anos 1950, o Baile das Bonecas, no
Rio atraia um público internacional... que vinham assistir homens em plumas e
paetês competirem à coroa de Deusas Glamorosas das celebrações carnavalescas”
(GREEN, 2000). A busca pelo prazer associou-se de maneira costumeira à
prostituição (PEREIRA, 2015) e “os espaços onde brilhavam as pantomímicas[2],... que no Rio de Janeiro
ficavam no entorno do Largo do Rossio (atual Praça Tiradentes), mesmo antes de
1870, era identificado como espaço de circulação homoeróticas” (BRAGANÇA,
2019).
Esses
espaços de socialização foram crescendo a e já entre os anos de 1920 e 1930
casos relacionados a condições não heteronormativas, o comportamento feminino e
homossexual seriam considerados condições médicas. Os anos de 1960 trouxeram
com o golpe militar uma ampliação dos fatores de perseguição, preconceito e
punição a doença homossexual a partir da visão de uma comunidade cristã em defesa
do capital... As forças policiais perseguiam travestis e fechavam pontos de
prostituição e espaços de socialização em favor da moralidade e da higienização
desses espaços. (PEREIRA, 2015). De acordo com Green (2000) o fator sexual foi
menos importante nas perseguições políticas do que o posicionamento ideológico
e político. Bares que mantiveram espaço para socialização gay iniciaram os
shows de travestis, com apresentações de teatro.
A
revolução de Stonewall em Nova York chegou na américa latina mas foi barrada
nas fronteiras brasileiras pela repressão militar, impossibilitando a formação
de um movimento gay nacional, porem criaram um florescimento de cenas culturais
sexualmente expandidas nas grandes cidades (BRAGANÇA, 2019). Em meados dos anos
de 1970, com o início do declínio do poder militar, grupos de militância se
reorganizam. Estudantes, trabalhadores, mulheres e negros mobilizaram diversas
ondas de oposição ao regime e auxiliando no processo de abertura gradual
(GREEN, 2000). Os “Dzi Croquetes”, ocupam a cena carioca com apresentações
andrógenas, usando barba e batom, implodindo os conceitos de papeis sexuais.
Não se diziam engajados à causa gay, apenas defendiam a liberdade de expressão
e mesmo sem uma apresentação teatral linear, tornaram-se um marco para a
libertação gay seguinte (MORENO, 2001).
Empiricamente,
insisto aqui em questionar os fatores religiosos frente as dificuldades de
aceitação de diferentes identidades. “A censura moralista do governo militar
limitava referências a homossexualidade na impressa... tornando a formação de
um movimento político ‘gay’ no Brasil, impossível” (GREEN, 2000) e como já
relacionado por Green (2000), a perseguição de gays por posicionamentos
ideológicos superava à sua sexualidade. Enquanto gays atores apresentando
espetáculos para gays, ou segundo Moreno (2001), “gays que entram em cartaz
como mais uma peça gay que entra em cartaz. Peças de homossexuais, para
homossexuais, com aquelas coisas que só homossexuais entendem”, termos que eram
referências para o público, não afetassem o tradicionalismo heteronormativo
cristão, não haeria problemas. Consideradas como “arena de lutas pelos direitos
humanos” (MORENO, 2001), muito mais que uma boa peça de teatro. Relativo a
isso, José Vicente de Paula (1945-2007), dramaturgo iniciante no final dos anos
de 1960 teve seu espetáculo censurado, e apesar das citações moralistas de
homossexualidade em cena, alguns trechos da peça nos levam a acreditar que
muito mais fortes para a censura sexual foram os fatores de pragmatismo
religioso:
“Num primeiro
plano, como quer José Vicente, “Santidade” expõe a vida de michê
com a devida mácula cristã. A prostituição masculina está aquém da retidão
divina. Mas o autor transcende o tema. A peça também expia a noção de pecado
segundo o peso da crença católica. Mais: avança para dentro mas de uma
juventude vivida das relações humanas no que elas têm de superfície e essência.
Há 30 anos, quando
o então presidente Costa e Silva censurou “Santidade”, em seu ataque de
moralidade cívica, ele provavelmente se ateve a algumas frases de impacto que,
não necessariamente, refletem o âmago da história. Por exemplo: “O Cristo
morreu sufocado; a Igreja matou Cristo!” – é uma das sentenças espulmantes que
saem da boca de Arthur, o personagem-vértice da peça. “Eu não acredito em santo
sem esperma!”, continua. Mais: “O Deus da juventude está morto!”.” (SANTOS,
Valmir. O Diário de Mogi. 1997)
O espetáculo “Santidade” se distancia deste
trabalho quando narra um espetáculo feito para os palcos italianos tradicionais
por atores indistintos de orientação ou identidade sexual, apesar de, para
Tibaji (2017), que inicia seu texto dizendo que o teatro abriga, seja na vida
real, seja entre seus profissionais, um refúgio para a diversidade sexual.
Dicotomicamente se aproxima quando trata da cena homossexual, mesmo fora do
“gueto gay” (PEREIRA, 2015), trazendo aos palcos uma realidade ficcional que
tarja a vida de excluídos sociais devido as suas escolhas e declinações
religiosas frente as suas orientações sexuais. O que mais reflete a presença
marcante do preconceito religioso surge no fato de que em 1968 uma peça que
narra
“...sobre um
ex-seminarista, que, vivendo em São Paulo às custas do amante, recebe a visita
do irmão que está para ordenar-se padre, colocando em xeque sua vocação
religiosa. A montagem que teria direção de Fauzi Arap e produção da
atriz Tônia Carrero, é censurada pelo marechal Costa e Silva em 1968,
declarando em rede televisiva que aquele era "o exemplo de espetáculo que
jamais seria encenado no país.” E logo no ano seguinte a estréia de José
Vicente no teatro acontece em 1969, com a montagem de O
Assalto pelo Teatro Ipanema, com direção de Fauzi Arap
e atuação de Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque. A peça obtém
sucesso imediato, projetando o nome de José Vicente na dramaturgia brasileira,
ao lado de Leilah Assumpção, Isabel Câmara, Consuelo de
Castro e Antônio Bivar. Esses autores, com linhagens diversificadas,
devassam a intimidade de suas personagens, levando o conflito às últimas
conseqüências. Temas como religião, homossexualidade e drogas são tratados com
enfoque existencial e subjetivo, com diálogos que beiram o absurdo. O texto
enfoca o problema da prostituição masculina em que o bancário Victor
assedia moralmente o faxineiro Hugo após o expediente. José Vicente é agraciado
como melhor autor de 1968, com os prêmios Molière, Golfinho de Ouro e
Associação Paulista de Críticos Teatrais, APCT”. (Enciclopédia Itaú Cultural)
Outro
autor que discorre sobre questões de identidade é Coelho Neto, que tem seu
texto “O Patinho Torto”, que faz referências a travestis, censurado nos anos
1920, mas liberado em 1964 (TIBAJI, 2017) . Esse texto narra a história de uma
moça de família que ao completar 18 anos descobre que é homem. Criado desde seu
nascimento como menina e usando roupas de menina, ao se consultar com um médico
lhe é revelado que ao nascer houve um erro em seu registro. Baseada em uma
notícia de jornal, não faz referências religiosas a não ser que toda sua
família é extremamente pudica e que a situação perturba a todos. A comicidade
da peça não lhe trouxe prêmios nem elogios públicos de crítica. Nelson
Rodrigues em sua literatura aborda o sexo em suas obras e vez ou outra adentra
no universo LGBT, como nos textos “Album de Familia”, “Toda Nudez Será
Castigada” e “O Beijo no Asfalto”, assim como Oswald de Andrade também cita
esse universo em “O Rei da Vela”.
E
desse tempo, assim como as tragédias gregas, muito há de se achar em gavetas
escondidas, estantes empoeiradas de bibliotecas ou mesmo em cinzas não mais
legíveis. O que realça a necessidade de se apresentar ao mundo as diversas
identidades vistas por autores de identidades diversas. Tem-se aqui a
necessidade que a arte e o conhecimento nos impõem. Deixar fluir o pensamento e
o registro, seja visual, seja comportamental é uma necessidade que a
criatividade regala ao artista. O teatro em seu aspecto mais profundo de criar
reflexões, de ensinar, de ato político de resistência e de resignação em vários
momentos assumiu seu papel nas mãos de autores e nos corpos de atores. As lutas
pelas igualdades que se iniciam no Brasil com a diluição da ditadura dão
créditos ao passado, vazão e visibilidade ao presente e esperanças ao futuro.
Aqui começa a “primeira onda” (FACCHINI, 2003) de igualdades entre as
identidades diversas e ao não binarismo sexual.
BIBLIOGRAFIA
FACCHINI, Regina. Movimento Homossexual no
Brasil: Recompondo um histórico. São Paulo: Universidade Estadual de Campinas, 2003.
BOMFIM,
Silvano Andrade do. “homossexualidade, direito e religião: da pena de morte à
união estável. A criminalização da homofobia e seus reflexos na liberdade
religiosa”. Revista Brasileira de
Direito Constitucional – RBDC n. 18 – jul./dez. 2011 retirado de http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-18/RBDC-18-071-Artigo_Silvano_Andrade_do_Bomfim_(Homossexualidade_Direito_e_Religiao_da_Pena_de_Morte_a_Uniao_Estavel).pdf em 30
de maio de 2020.
ENCICLOPÉDIA
ITAÚ CULTURAL. “BIOGRAFIA: José Vicente de Paula”. Retirado de http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa359451/jose-vicente em 31
de maio de 2020
SANTOS,
Valmir. TELEJORNAL Diário de Mogi. Retirado de https://teatrojornal.com.br/1997/11/santidade-transcende-culpa-crista/ em 31
de maio de 2020
GREEN,
James N. “Mais amos e mais tesão: a construção de um movimento brasileiro de
gays, lésbicas e travestis”. Cadernos Pagu. 2000
MORENO,
Newton. “A máscara alegre: contribuições da cena gay para o teatro brasileiro”.
III Congresso de Cultura e Homoerotismo: UFF. 2001
TIBAJI,
Alberto. “Apontamentos e reflexões sobre as relações entre teatro no Brasil e
diversidade cultural”. O eixo e a roda, Belo Horizonte, v.26: Universidade
Federal de São João Del Rei, MG. 2017
FERREIRA,
Rhanielly. “Fora do gueto: o processo de formação da 1ª onda do movimento gay
no Brasil”. Emblemas – Revista da Unidade Acadêmica Especial de História e
Ciências Sociais – V. 12: UFG\CAC. 2015
BRAGANÇA,
Lucas. “Fragmentos da babadeira história drag brasileira”. Revista Eletrônica
de Comum. Inf. Inov. Saúde: UFF. Niterói – RJ. 2019
BORTOLOZZI,
Remom Matheus. “A arte transformista brasileira: rotas para uma genealogia
decolonial”. Quaderms de Psicologia – V. 17, nº 3, pág 123 – 134: UERJ. RJ.
2015
[1]
Homem ativo (que penetra) que tem relação sexual com homem passivo (que é
penetrado).
[2]
Tipo de performance de canto e de realização de pequenos papeis cômicos que
envolviam a personificação feminina (BRAGANÇA, 2019)
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