quarta-feira, 3 de junho de 2020

A última marola antes da “Primeira Onda”


A última marola antes da “Primeira Onda”
LIMA, Anderson
Muito mais que um xingamento ou uma definição de orientação sexual, o termo bicha determinava uma posição na escala social. Ricos ou pobres, brancos ou pretos, homens, mulheres ou bichas, homens efeminados ou passivo na relação sexual, aquele que é penetrado, tem “a posição social inferior da ‘mulher’...” (GREEN, 2000, PÁG. 279). Em Green (2000) é narrado que até antes dos anos de 1970 “os homens que mantinham relação sexual com outros homens se dividiam em duas categorias: o homem verdadeiro e a bicha”. O papel do “bofe”[1] surge como o homem ativo, que assume o papel de liderança na relação sexual e mesmo tendo relação com outro homem, ainda assim é considerado “homem verdadeiro” (GREEN, 2000). Até meados do séc XX não se tem registros de bares exclusivos ao público GAY, levando esses encontros às praças, becos, praias e banheiros públicos.
A própria história nos apresenta civilizações antigas que consideravam corriqueiras e normais os casos de relacionamento e até mesmo casamentos de pessoas do mesmo sexo. Atos esses que apenas começaram a ser criminalizados no início da era cristã, levando à pena de morte aqueles que os praticava (BOMFIM, 2011). Casos, obviamente, de extorsão política e financeira que tanto Estado quanto Igreja se aproveitaram para ampliar seus bens e recursos. As ordens religiosas e Estatais criaram Leis e regras como n“As Ordenações Manuelinas (1521)... que trataram do “crime de sodomia” no Livro Quinto, Título XII, e, igualmente, determinavam a morte pelo fogo, estabelecendo, contudo, que todos os bens do condenado fossem confiscados à Coroa portuguesa...” (BOMFIM, 2011).
Em detrimento as relações políticas instituem-se as relações de pré-conceitos. As necessidades religiosas da população em geral influenciaram diretamente em algumas segregações de relacionamento, principalmente as que se referem aos relacionamentos do mesmo sexo.. No Brasil, apenas em 1830, uma Lei Imperial aboliria o crime de sodomia, porém a aversão aos atos sexuais de pessoas do mesmo sexo prevê crimes de indecência. Códigos de noções de moral, decência pública e vadiagem eram usados na abordagem de pessoas que transgredissem as normas sexuais aprovadas socialmente (GREEN, 2000). Através do código penal de 1890, o preconceito se tornava indireto, promovendo a prisão daqueles que cometessem atos de atentado público ao pudor ou o travestimento (PEREIRA, 2015).
A procura pelas praias e locais desérticos e semidesertos se torna uma grande rotina GAY, além dos quartos de hotel, casas de amigos e festas particulares. O carnaval se torna então o momento do ano em que tudo é liberado, inclusive o ato sexual “pervertido”. Green (2000) se refere ao carnaval como os quatro dias do ano em que tudo é permitido, onde gays podiam expressar-se livremente. Durante esse período do ano se tornam abundantes os bailes dos travestis, onde homens vestidos de mulheres reinavam. “Nos anos 1950, o Baile das Bonecas, no Rio atraia um público internacional... que vinham assistir homens em plumas e paetês competirem à coroa de Deusas Glamorosas das celebrações carnavalescas” (GREEN, 2000). A busca pelo prazer associou-se de maneira costumeira à prostituição (PEREIRA, 2015) e “os espaços onde brilhavam as pantomímicas[2],... que no Rio de Janeiro ficavam no entorno do Largo do Rossio (atual Praça Tiradentes), mesmo antes de 1870, era identificado como espaço de circulação homoeróticas” (BRAGANÇA, 2019).
Esses espaços de socialização foram crescendo a e já entre os anos de 1920 e 1930 casos relacionados a condições não heteronormativas, o comportamento feminino e homossexual seriam considerados condições médicas. Os anos de 1960 trouxeram com o golpe militar uma ampliação dos fatores de perseguição, preconceito e punição a doença homossexual a partir da visão de uma comunidade cristã em defesa do capital... As forças policiais perseguiam travestis e fechavam pontos de prostituição e espaços de socialização em favor da moralidade e da higienização desses espaços. (PEREIRA, 2015). De acordo com Green (2000) o fator sexual foi menos importante nas perseguições políticas do que o posicionamento ideológico e político. Bares que mantiveram espaço para socialização gay iniciaram os shows de travestis, com apresentações de teatro.
A revolução de Stonewall em Nova York chegou na américa latina mas foi barrada nas fronteiras brasileiras pela repressão militar, impossibilitando a formação de um movimento gay nacional, porem criaram um florescimento de cenas culturais sexualmente expandidas nas grandes cidades (BRAGANÇA, 2019). Em meados dos anos de 1970, com o início do declínio do poder militar, grupos de militância se reorganizam. Estudantes, trabalhadores, mulheres e negros mobilizaram diversas ondas de oposição ao regime e auxiliando no processo de abertura gradual (GREEN, 2000). Os “Dzi Croquetes”, ocupam a cena carioca com apresentações andrógenas, usando barba e batom, implodindo os conceitos de papeis sexuais. Não se diziam engajados à causa gay, apenas defendiam a liberdade de expressão e mesmo sem uma apresentação teatral linear, tornaram-se um marco para a libertação gay seguinte (MORENO, 2001).
Empiricamente, insisto aqui em questionar os fatores religiosos frente as dificuldades de aceitação de diferentes identidades. “A censura moralista do governo militar limitava referências a homossexualidade na impressa... tornando a formação de um movimento político ‘gay’ no Brasil, impossível” (GREEN, 2000) e como já relacionado por Green (2000), a perseguição de gays por posicionamentos ideológicos superava à sua sexualidade. Enquanto gays atores apresentando espetáculos para gays, ou segundo Moreno (2001), “gays que entram em cartaz como mais uma peça gay que entra em cartaz. Peças de homossexuais, para homossexuais, com aquelas coisas que só homossexuais entendem”, termos que eram referências para o público, não afetassem o tradicionalismo heteronormativo cristão, não haeria problemas. Consideradas como “arena de lutas pelos direitos humanos” (MORENO, 2001), muito mais que uma boa peça de teatro. Relativo a isso, José Vicente de Paula (1945-2007), dramaturgo iniciante no final dos anos de 1960 teve seu espetáculo censurado, e apesar das citações moralistas de homossexualidade em cena, alguns trechos da peça nos levam a acreditar que muito mais fortes para a censura sexual foram os fatores de pragmatismo religioso:
“Num primeiro plano, como quer José Vicente, “Santidade” expõe a vida de michê com a devida mácula cristã. A prostituição masculina está aquém da retidão divina. Mas o autor transcende o tema. A peça também expia a noção de pecado segundo o peso da crença católica. Mais: avança para dentro mas de uma juventude vivida das relações humanas no que elas têm de superfície e essência.
Há 30 anos, quando o então presidente Costa e Silva censurou “Santidade”, em seu ataque de moralidade cívica, ele provavelmente se ateve a algumas frases de impacto que, não necessariamente, refletem o âmago da história. Por exemplo: “O Cristo morreu sufocado; a Igreja matou Cristo!” – é uma das sentenças espulmantes que saem da boca de Arthur, o personagem-vértice da peça. “Eu não acredito em santo sem esperma!”, continua. Mais: “O Deus da juventude está morto!”.” (SANTOS, Valmir. O Diário de Mogi. 1997)
O espetáculo “Santidade” se distancia deste trabalho quando narra um espetáculo feito para os palcos italianos tradicionais por atores indistintos de orientação ou identidade sexual, apesar de, para Tibaji (2017), que inicia seu texto dizendo que o teatro abriga, seja na vida real, seja entre seus profissionais, um refúgio para a diversidade sexual. Dicotomicamente se aproxima quando trata da cena homossexual, mesmo fora do “gueto gay” (PEREIRA, 2015), trazendo aos palcos uma realidade ficcional que tarja a vida de excluídos sociais devido as suas escolhas e declinações religiosas frente as suas orientações sexuais. O que mais reflete a presença marcante do preconceito religioso surge no fato de que em 1968 uma peça que narra
“...sobre um ex-seminarista, que, vivendo em São Paulo às custas do amante, recebe a visita do irmão que está para ordenar-se padre, colocando em xeque sua vocação religiosa. A montagem que teria direção de Fauzi Arap e produção da atriz Tônia Carrero, é censurada pelo marechal Costa e Silva em 1968, declarando em rede televisiva que aquele era "o exemplo de espetáculo que jamais seria encenado no país.” E logo no ano seguinte a estréia de José Vicente no teatro acontece em 1969, com a montagem de O Assalto pelo Teatro Ipanema, com direção de Fauzi Arap e atuação de Rubens Corrêa e Ivan de Albuquerque. A peça obtém sucesso imediato, projetando o nome de José Vicente na dramaturgia brasileira, ao lado de Leilah Assumpção, Isabel Câmara, Consuelo de Castro e Antônio Bivar. Esses autores, com linhagens diversificadas, devassam a intimidade de suas personagens, levando o conflito às últimas conseqüências. Temas como religião, homossexualidade e drogas são tratados com enfoque existencial e subjetivo, com diálogos que beiram o absurdo. O texto enfoca o problema da prostituição masculina em que o bancário Victor assedia moralmente o faxineiro Hugo após o expediente. José Vicente é agraciado como melhor autor de 1968, com os prêmios Molière, Golfinho de Ouro e Associação Paulista de Críticos Teatrais, APCT”. (Enciclopédia Itaú Cultural)
Outro autor que discorre sobre questões de identidade é Coelho Neto, que tem seu texto “O Patinho Torto”, que faz referências a travestis, censurado nos anos 1920, mas liberado em 1964 (TIBAJI, 2017) . Esse texto narra a história de uma moça de família que ao completar 18 anos descobre que é homem. Criado desde seu nascimento como menina e usando roupas de menina, ao se consultar com um médico lhe é revelado que ao nascer houve um erro em seu registro. Baseada em uma notícia de jornal, não faz referências religiosas a não ser que toda sua família é extremamente pudica e que a situação perturba a todos. A comicidade da peça não lhe trouxe prêmios nem elogios públicos de crítica. Nelson Rodrigues em sua literatura aborda o sexo em suas obras e vez ou outra adentra no universo LGBT, como nos textos “Album de Familia”, “Toda Nudez Será Castigada” e “O Beijo no Asfalto”, assim como Oswald de Andrade também cita esse universo em “O Rei da Vela”.
E desse tempo, assim como as tragédias gregas, muito há de se achar em gavetas escondidas, estantes empoeiradas de bibliotecas ou mesmo em cinzas não mais legíveis. O que realça a necessidade de se apresentar ao mundo as diversas identidades vistas por autores de identidades diversas. Tem-se aqui a necessidade que a arte e o conhecimento nos impõem. Deixar fluir o pensamento e o registro, seja visual, seja comportamental é uma necessidade que a criatividade regala ao artista. O teatro em seu aspecto mais profundo de criar reflexões, de ensinar, de ato político de resistência e de resignação em vários momentos assumiu seu papel nas mãos de autores e nos corpos de atores. As lutas pelas igualdades que se iniciam no Brasil com a diluição da ditadura dão créditos ao passado, vazão e visibilidade ao presente e esperanças ao futuro. Aqui começa a “primeira onda” (FACCHINI, 2003) de igualdades entre as identidades diversas e ao não binarismo sexual.


BIBLIOGRAFIA
FACCHINI, Regina. Movimento Homossexual no Brasil: Recompondo um histórico. São Paulo: Universidade Estadual de Campinas, 2003.
BOMFIM, Silvano Andrade do. “homossexualidade, direito e religião: da pena de morte à união estável. A criminalização da homofobia e seus reflexos na liberdade religiosa”.  Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 18 – jul./dez. 2011 retirado de http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-18/RBDC-18-071-Artigo_Silvano_Andrade_do_Bomfim_(Homossexualidade_Direito_e_Religiao_da_Pena_de_Morte_a_Uniao_Estavel).pdf em 30 de maio de 2020.
ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL. “BIOGRAFIA: José Vicente de Paula”. Retirado de http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa359451/jose-vicente em 31 de maio de 2020
SANTOS, Valmir. TELEJORNAL Diário de Mogi. Retirado de https://teatrojornal.com.br/1997/11/santidade-transcende-culpa-crista/ em 31 de maio de 2020
GREEN, James N. “Mais amos e mais tesão: a construção de um movimento brasileiro de gays, lésbicas e travestis”. Cadernos Pagu. 2000
MORENO, Newton. “A máscara alegre: contribuições da cena gay para o teatro brasileiro”. III Congresso de Cultura e Homoerotismo: UFF. 2001
TIBAJI, Alberto. “Apontamentos e reflexões sobre as relações entre teatro no Brasil e diversidade cultural”. O eixo e a roda, Belo Horizonte, v.26: Universidade Federal de São João Del Rei, MG. 2017
FERREIRA, Rhanielly. “Fora do gueto: o processo de formação da 1ª onda do movimento gay no Brasil”. Emblemas – Revista da Unidade Acadêmica Especial de História e Ciências Sociais – V. 12: UFG\CAC. 2015
BRAGANÇA, Lucas. “Fragmentos da babadeira história drag brasileira”. Revista Eletrônica de Comum. Inf. Inov. Saúde: UFF. Niterói – RJ. 2019
BORTOLOZZI, Remom Matheus. “A arte transformista brasileira: rotas para uma genealogia decolonial”. Quaderms de Psicologia – V. 17, nº 3, pág 123 – 134: UERJ. RJ. 2015



[1] Homem ativo (que penetra) que tem relação sexual com homem passivo (que é penetrado).
[2] Tipo de performance de canto e de realização de pequenos papeis cômicos que envolviam a personificação feminina (BRAGANÇA, 2019)



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