Eu Vampiro
Anderson Lima
Despertei assustado com uma luz fraca sobre mim
e acreditei estar amanhecendo. Notei que a luz fraca vinha de um lampião. Achei
aquilo engraçado, alguém carregando um lampião, a gás, aqui. Fiquei em silêncio
e ouvi os risos dos jovens que se aproximavam sem nem notar a minha presença.
Eles falavam de suas aventuras sexuais com garotas mais velhas e foi assim que
percebi que eles não tinham mais do que quinze anos. Jovens demais para
perceber que o local que eles estavam era perigoso demais para eles. Queria
alertá-los, mas não pude me mexer. Olhei para o meu corpo, paralisado, e senti
um enorme calafrio passando por cada músculo, cada fibra minha. Senti fome,
sede e frio, tudo ao mesmo tempo e tive vontade de me esconder. Senti vergonha
de ter essas sensações, mesmo sabendo dos riscos que aquelas crianças corriam.
Ouvi um ruído, passos se aproximando e não pude gritar. Queria manda-los
correr, se esconder, mas sabia que não havia mais tempo. Aquele era o fim, meu
e daqueles garotos que inventavam histórias que ainda não tinham vivido. Era o
momento de muitas mortes. Seus gritos de alegria se tornaram gritos de terror.
A angustia de suas vidas escapando de seus corpos tão jovens. Senti medo por
eles, mas não pude evitar, o seu sangue era a única coisa que me nutria. Não
conseguia me mexer, eu pensava, mas minhas mãos estavam em torno de suas
gargantas e meus dentes enfiados em suas peles, rasgando enquanto meus lábios
sentiam o doce sabor de seu sangue que jorrava e escorria. Eu tentava não
desperdiçar, para me nutrir o suficiente, para não precisar de mais. E quando
tudo acabou, quando o último fio de vida deixou a última criança, eu queria
mais. Minhas pernas, mesmo sem se mover, me levavam para longe dali, a procura
de mais vítimas.
Tudo começou quando eu tinha treze anos. Meu
pai, ele nos deixou. Quando saia de seu trabalho um carro desgovernado o
atropelou. Seu enterro foi sublime. Do jeito que ele queria, com música e muita
gente. Todos gostavam dele. E foi lá que eu vi pela primeira vez. Foi lá que eu
encontrei meu destino, minha rendição e minha morte. Não acreditei que um menino de treze anos poderia se apaixonar tão cegamente nessa idade. Mas ele me
cegou. Furtou meus desejos, meus sonhos e minhas esperanças. Depois do enterro
do meu pai ele me seguiu até minha casa. Eu morava em uma rua onde todos se
conheciam. Minha casa era simples. Branca, dois quartos e nos fundos do quintal
ficava o quarto onde eu guardava meus segredos. Meus amigos, os da minha rua
e os da rua vizinha, gostavam de vir brincar comigo e nós falávamos de nossos
sonhos e das pessoas mais bonitas da escola. Eles sempre diziam que eu casaria
com uma pessoa bonita. Mas isso não aconteceu.
Quando cheguei em casa, todos estavam tristes,
minha mãe chorava sentada em uma cadeira. A vizinha dona da padaria dava a ela
um copo d’água enquanto dizia que tudo ia ficar bem. Eu não conseguia imaginar
como alguma coisa poderia ficar bem depois de termos enterrado meu pai. Alguns
dos vizinhos andavam pela casa para ver o que tínhamos e outros abriam nossa
geladeira. Quando olhei pela janela, lá estava ele. Vestido de preto, cabelos
bem peteados, os sapatos brilhavam e refletiam a luz pálida de um poste. Fiquei
encantado, mas não sabia o que fazer. Queria correr para fora e convidá-lo para
entrar, mas o que os vizinhos iam falar se eu convidasse um estranho para
entrar em nossa casa. Tinha a vontade, mas não tinha o poder. A noite foi
ficando fria e as pessoas foram saindo e deixando a solidão para mim e minha
mãe. Eu fui para o meu quarto e comecei a recortar papéis e revistas quando
ouvi baterem à porta. Minha mãe atendeu e a voz que respondeu era como se fosse
uma orquestra de anjos e querubins, todos cantando ao mesmo tempo com tanta
afinação que deixaria mudo qualquer cantor. Aquela voz, assim que a ouvi tive
certeza. Eu sabia quem era. Meu grande amor, aquele que cativou meu coração e
minha mente apenas com um olhar. Ele desejava pêsames a minha mãe e perguntava
se havia algo que ele poderia fazer para ajudar. Quase sai correndo do quarto e
disse que ele poderia me pedir em casamento que tudo iria ficar bem, mas me
contive.
Os segundo passaram como horas enquanto eu
ouvia as doces palavras que saiam de sua boca. Conseguia imaginar cada
movimento de seus lábios e senti como se ele estivesse me beijando. Loucuras de
um menino de treze anos de orientação sexual, como diriam, invertida. Minha mãe então me chamou. Fiquei paralisado, ela
queriam e apresentar para ele. Eu não sabia como estava, se meu rosto mostrava as marcas de um enterro, ou se estava tão atraente quanto um adolescente com o rosto cheio de marcas e cicatrizes de espinhas. Corri para o espelho para verificar,
passei um gloss suave, arrisquei um rímel e um contorno de olhos, discreto para que minha mãe não percebesse. Minha
mãe me chamou de novo. Comecei a passar blush e resolvi trocar de roupa.
Colocar alguma coisa mais apropriada para conhecer o grande amor da minha vida.
Quando minha mãe chamou pela terceira vez, ela já estava na porta do meu
quarto, com um olhar doce e meigo que só uma mãe que quer consolar um filho
pode ter. Trazia nas mãos um pedaço de torta de limão, minha preferida e disse
que um senhor muito elegante havia levado para acalmar um pouco de meu pranto.
Eu corri pela porta, sem nem olhar para as mãos de minha mãe e vi a porta da
entrada fechada. A sala vazia. Olhei para traz e vi minha mãe chorando com a torta
nas mãos. Ele havia ido embora.
Naquela semana não fui a escola, nem meus amigos vieram brincar comigo. Eu ficava da janela, olhando para o poste e para
a rua. Esperava ver novamente aquele que me trouxe o amor. Mas ele não voltou,
nem naquela semana, nem no resto do mês. Já havia perdido a esperança de vê-lo
novamente quando saindo da escola lá estava ele. Parado. Estava em um carro,
daqueles iguais aos que a gente vê em filmes. Quando me viu ele sorriu. Seu
sorriso era como um oásis no deserto. Seus olhos brilharam como fogo quando me
viu e então eu percebi que ele também me amava. Aproximei-me e perdi o fôlego
ao sentir o seu perfume. Era inebriante. Doce como a torta de limão. Eu queria
tê-lo para mim. Queria estar em seus braços, beija-lo, possui-lo. Não entendia
como esses pensamentos podiam passar pela cabeça de uma criança, mas pensava.
Sua pele era como veludo. Peguei sua mão estendida para mim como se fosse a
salvação para minha vida. Não sabia que era a condução para minha morte. Deixei
que ele me guiasse até o carro, entrei, sentei-me ao seu lado e segui com ele
sem perguntar onde iriamos ou o que iriamos fazer. Fui levado sem questionar,
sem lembrar-se de minha mãe ou de qualquer outra coisa. Fomos até uma estrada e
quando ele parou o carro me perguntou se eu não estava com medo. Ele me disse
que eu não deveria sair com alguém que eu não conhecesse. Fiquei irritado com
aquilo. Foi ele quem me chamou, foi ele quem me levou até ali e agora queria me
dizer o que era certo ou errado.
Sai do carro e voltei pela estrada. Chorava e
não percebi quanto escuro estava a noite. Não tive medo até chegar na porta de
minha casa, ver o carro do socorro, os enfermeiros, os vizinhos, e minha mãe,
saindo de casa deitada em uma maca, coberta com um pano branco que tapava seu
rosto. Não entendi porque seu rosto estava coberto até que mãos pousaram sobre
meu ombro. Eram as mãos da dona da padaria. Eu não queria aquelas mãos me
consolando, não queria ouvir palavras de ninguém além das do meu grande amor.
Eu senti a dor pela morte de minha mãe, mas chorava pela ausência
dele. Porque ele não estava ali comigo, porque ele não voltou para me pegar e
me levar embora.
Entrei em casa correndo, coloquei sapatos e
algumas roupas na mochila. Saí pela porta dos fundos para que ninguém me visse.
Fugi. Fui pela estrada até o lugar onde o carro estava e ele continuava lá, me
esperando. Ele sabia que eu voltaria. Sabia que eu o queria mais que qualquer
coisa. Entrei no carro e pedi para que ele me levasse embora para longe dali,
onde ninguém me conhecesse. Onde ninguém poderia me consolar além dele. Paramos
perto de um bosque, onde pude ouvir os pássaros fugirem e os animais silvestres
se esconderem. Ele saiu do carro, abriu a porta para mim e me pegou pelas mãos.
Senti que aquele seria o dia mais importante de minha vida. Senti que algo iria
mudar para sempre o meu destino. Ele me encostou em uma árvore e sussurrou ao
meu ouvido. Sua voz macia não me deixou entender o que ele falava, desceu a
boca pelo meu pescoço e ali, delicado como sua voz ele cravou seus dentes.
Eu não senti dor, apenas prazer, o prazer de alimentar o meu grande amor. Queria que aquele momento durasse a eternidade. Mas acabou. E toda a maciez fugiu de seus lábios quando a última gota de meu sangue saiu de meu corpo. Caí sobre as folhas secas, morto. E ele, entrou no carro e foi embora. Não olhou para trás. Não se despediu. A única lembrança que tenho dele foi a fome, que ele me deixou como herança.
Eu não senti dor, apenas prazer, o prazer de alimentar o meu grande amor. Queria que aquele momento durasse a eternidade. Mas acabou. E toda a maciez fugiu de seus lábios quando a última gota de meu sangue saiu de meu corpo. Caí sobre as folhas secas, morto. E ele, entrou no carro e foi embora. Não olhou para trás. Não se despediu. A única lembrança que tenho dele foi a fome, que ele me deixou como herança.
Ainda espero, no mesmo bosque, perto da mesma
árvore que um dia ele retorne, que ele reconheça o amor que sentimos um pelo
outro. Destruo a vida de quem passa, mas não controlo os meus atos. Sigo por
instinto, minhas pernas e minhas mãos agem sem controle e minha fome nunca se
aplaca. Um dia ele voltará e poderemos nos alimentar juntos, beber o sangue dos
que passam por aqui. Viveremos o nosso amor.
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