CONTOS INSANOS
Por Anderson Lima
Era só mais uma noite comum, daquelas em que um
adolescente passa acordado com insônia. Lembro como se fosse ontem, apesar de
já ter se passado muito mais do que trinta anos... Minha cama ficava embaixo da
janela que dava para a rua com um espaço entre cama e parede suficiente para um
criado mudo. Ao lado da minha cama ficava a cama do meu irmão mais novo – todos
são mais novos porque eu sou o mais velho da família – e esses eram os únicos
móveis do quarto, pois ainda não tinha guarda-roupas. A porta do
quarto dava uma visão a um longo corredor e ia direto ao quarto da minha irmã,
na outra ponta. A casa era nossa nova morada e era tão grande que podíamos
brincar de pique esconde nela. A porta do quarto dos meus pais ficava bem ao
lado da minha, de frente a um outro corredor que formava um “L” com o
meu corredor e dava direto para a porta de saída da casa. De um lado nossos
quartos e do outro uma enorme sala de jantar que ia direto para a cozinha. A
cozinha era icônica, com duas paredes todas de vidro que recebiam o calor do
sol desde o meio-dia até ele se pôr. Isso fazia a casa toda aquecer, e o calor
as vezes era insuportável. No lado oposto a parede da sala de jantar, ficava
uma escada que levava ao terraço da casa. Bem na altura do meio da escada a
laje era baixa e até eu, com meus 160 centímetros de altura batia a cabeça ao
subir ou a testa ao descer, caso não tomasse cuidado.
Eu precisava explicar a estrutura da casa para que
pudesse contar minha história. Como já disse, era uma noite em que eu estava
acordado e os motivos podiam ser vários... Eu realmente tinha dificuldades para
dormir, eu era muito agitado, não tinha muitas atividades diárias além de
estudar... Mas, em especial, naquela noite eu queria muito ir ao banheiro que
ficava no corredor de frente a porta do meu quarto, entre minha porta e a porta
do quarto da minha irmã. Mas a casa com todas as lâmpadas apagadas ficava muito
escura e eu tinha muito medo do escuro. Sempre imaginava alguém, ou alguma
coisa, vindo no escuro. Eu nunca consegui entender a intensão da “coisa”, e
acho que por isso tinha tanto medo. Já estava me contorcendo de tanta vontade e
não sabia se aquele seria o motivo para que eu superasse meu medo. Estava
chegando no auge da dicotomia que o pavor me propunha quando uma luz surgiu, e
não era apenas uma luz simbólica, que representasse a solução de um problema.
Era uma luz real que iluminou da porta do meu quarto ao final do corredor.
Minha mãe estava ali, de pé, na porta do meu quarto
olhando para mim. Tanto foi o alívio que até esqueci a vontade que estava de ir
ao banheiro. Parecia um anjo da minha salvação. Minha mãe, linda, cabelos
pretos, presos em um coque frouxo na nuca, uma camisola branca que refletia a
luz do corredor. Acho que nunca fiquei tão grato por uma aparição tão repentina
da minha mãe num momento tão oportuno. Comecei a falar como estava aliviado
pela presença dela quando ela de pronto me deu as costas e saiu andando. Chamei
por ela, que olhou para mim por cima do ombro, abriu um singelo sorriso e
seguiu andando para a sala de jantar. Levantei-me rápido e a segui. Falava sem
parar algo que não me recordo e nem compreendo por que a segui. Ela atravessou
a sala de jantar e parou no batente da porta da cozinha. Eu estava do outro
lado da sala de jantar. Olhava direto para ela. A luz, que estava no corredor a
acompanhou e naquele momento iluminava todo o portal, refletindo no batente da
porta como se fosse um arco de luz. Não notei a presença da luz misteriosa,
frente a presença da minha mãe.
Continuei minha peregrinação, curta, mas
misteriosa, conversando com minha mãe como se fosse dia, acompanhando o caminho
e a seguindo. Chegando ao portal de onde seu brilho iluminava, ela já estava
aos pés da escada que levava ao terraço. A partir desse momento eu comecei a me
sentir um pouco estranho, ou sentir estranho o que estava acontecendo. Minha
mãe começou a subir a escada e eu perguntei por que ela não falava comigo.
Comecei a ficar irritado com o diálogo de uma só via que mais parecia um monólogo
meu. Não ouvia a voz, mas via a imagem. E era tão real, tão presente que no
momento que ela chegou no meio da escada, minha mãe, em carne, osso e sangue
saiu da porta do quarto e chamou meu nome. Num fluxo de êxtase daquele momento
ínfimo e efêmero que me faz recordar o aforismo de Hipócrates eternizado na
poesia de Sêneca que diz ser a oportunidade fugaz, a experiência
enganosa e o julgamento difícil, me encontrei em uma realidade dicotômica.
Enxergava, sem dúvidas, minha mãe na porta de seu quarto, da forma que toda
mulher se encontra ao acordar no meio da noite. Cabelos presos em uma touca
sustentadas por grampos, em uma de suas camisolas pretas, porém com olhos
estatelados e fixos, não em mim, mas em sua imagem alva subindo a escada. Ao
voltar meu olhar para a outra figura, até então minha mãe, notei que seus
passos não passavam de um levitar por degraus, ascendendo ao topo da escada.
Corri em sua direção. Não sei explicar como o medo havia desaparecido e como
minha reação se procedeu neste momento.
Sempre tive medo do inexplicável, mas corri atrás
da luz. Queria uma proximidade maior. Estava aflito para chegar mais perto,
tocar, sentir a textura daquela que, imagem da minha mãe, se fazia envolta em
uma energia luminosa que me encantava. Subi com tanto vigor a escada que me
esqueci que deveria me abaixar e na velocidade bati o topo da minha cabeça no
teto de laje com tanta força que todas as imagens escureceram. Ao abrir os
olhos estava sentado aos pés da escada. Um gosto de sangue passava por minhas papilas
gustativas e ardia meus sentidos olfativos. Minha mãe, em camisolas pretas,
agachada ao meu lado, não sabia se olhava para mim ou para o topo da escada.
Neste momento eu me perguntava se ela podia ver a mesma coisa que eu via. A luz
se dissipava assim como a imagem que estava dentro dela. Uma percepção visual
inexplicável. Não consigo descrever como se deu a cena, nem os fatos que a
sucederam. Meu pai ouviu toda a balburdia e saiu do quarto para entender o que
acontecia e chegando ao nosso encalço viu apenas o último clarão que reproduzia
a imagem de um relâmpago, como em uma tempestade, sem trovão e que não afetou
em nada sua avaliação da situação. Eu, sonâmbulo, saí do meu quarto e subi as
escadas para o terraço, bati a cabeça e caí de volta. Como já era costumeiro
meu sonambulismo, segundo relatos, pois não tenho essas lembranças, esse fato
tornou-se segredo entre progenitora e cria.
Desde esse dia uma luz sempre ficava acessa dentro
de casa a noite durante nossas viagens morfeicas. Algum tempo depois, contando
o fato para minha avó, mulher altamente espiritualizada, espiritualizante e
espiritualista, o retumbar de um praguejo foi proferido ao citar a provável
aparição de minha bisavó, sua então sogra. “Nem depois de morta a velha nos
deixa em paz!”. Mas eu me senti em paz. Aquela presença de tanta luz e
serenidade me confortava. Me absteve de um medo que me assolava na escuridão, me
mostrando uma luz mesmo na presença do breu total. Senti tanta necessidade
daquela presença novamente que acendia velas no terraço, fazia orações, me
prostrava em templos pagãos perante a altares implorando sua presença
novamente. Mas de quem seria essa presença... Então minha avó encontrou, em
meio a suas bugigangas, uma fotografia, desbotada, com excesso de luz, de uma
senhora com o coque frouxo preso na nuca e um vestido branco, liso e reto,
semelhante a uma camisola. O rosto, quase invisível na foto, não mostrava
semblante, não possuía contornos, mas eu, em minha ansiedade de resposta via
perfeitamente a semelhança que aquela tinha com minha mãe. Aquela que era mãe
de meu avô e que eu nem havia conhecido. Vó Rita Inácia! Mulher, que segundo
contam, afastava a morte com rituais na porta que dava para seu quintal, que
curava febres de criança com suas rezas, que sarava enfermos com suas benzas.
Não sei se foi uma aparição, se foi um sonho, mas
seja o que tenha sido, foi tão real que mesmo após tantos anos não sai da minha
mente. A imagem de um sorriso singelo envolto em luz se dissipando no ar como
um relâmpago, rápido e tão marcante que gruda na retina. A casa não é mais a
mesma. Meu irmão se casou e agora mora lá com a família. Modificou a escada
para o terraço, aumentou a área e fez um salão para recepções. Mas, ainda hoje,
quando chego na cozinha, me pego olhando para o topo da escada e para o portão
que dá acesso ao terraço. Tenho medo e esperança de um desconhecido. Não sei se
quero ver de novo, se quero mais um contato. Não consigo nem dizer se foi real
ou imaginário. Talvez queira apenas uma prova de minha lembrança, para que
minha memória aceite o fato. Se nada acontecer até o fim dos meus dias, então
até o fim dos meus dias esperarei por essa confirmação, mas nunca negarei que
tenha acontecido.
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