Foi caminhando em uma noite qualquer que me deparei com aquela entrada.
Ela não surgiu do nada. Meus sentimentos se tornaram a chave que abriu o portal
que, acredito eu, ninguém, nunca deveria entrar. Há muito me sentia aprisionado
a um sentimento que eu não podia compreender e que vagava entre a alegria e a
tristeza. Era como um ar preso em meu peito, que estava vibrante esmerando as
paredes do meu corpo pronto para sair. E foi naquele momento, enquanto eu
caminhava que uma explosão de lembranças fez todo o tormento daquele
sentimento que não possuía uma definição exata se esvair em um suspiro
alto. Uma pequena névoa se formou por entre meus lábios e densamente flutuou
pelo ar formando um arco bruxuleante que se abriu como uma passagem. Por traz
de seu véu eu podia perceber sombras indistintas que vagavam ladeando luzes
cegantes. Náuseas ocuparam o lugar da respiração e num devaneio de vida eu me
vi morto. Atravessei como que num flash o divisor de mundos. Aquele espaço sem
paredes me cercava como uma prisão. O murmurar das sombras ecoavam aos meus
ouvidos enquanto o luzir me cegava e a sensação dicotômica de prazeres fluíam em
sinapses inundando meu corpo etéreo de um misto de raivas, felicidades e
desejos. Meus sonhos escorriam como um rio turbulento, não me davam tempo de percebê-los, mas
eu sabia que eram meus. Todos os meus amores escorriam derretidos como cera de
vela e se evaporavam antes mesmo que eu pudesse tocá-los, então a tristeza da
perda assumiu com grande pulsar todo meu ser, expandindo e retraindo meu corpo
com tanta ferocidade que a dor superava qualquer vontade de ser ou de estar. Uma
pequena e quase invisível lágrima brotou e uma lembrança surgiu. Era como se na
morte eu me lembrara do momento em que nasci. Eu saia do ventre do
mundo para um mundo sem ventre e caía nos braços daquela que me espera
todos os dias desde minha concepção. Desci em um abismo com as sombras chicoteando
cada centímetro de minha presença naquele lugar e se afastando via as luzes que
se separavam em luzeiros distintos formando uma via distante e aquela lembrança
foi tomando forma, como que tentando argumentar com minha desistência. Lançando
a ermo cordas indecifráveis, tentando laçar um fio de esperança. Desci em uma
queda imensurável por um tempo suficiente para ver cada segundo de tudo que já
havia visto. Cada momento, cada imagem se separava em caixas arquivadas em um
canto esquecido de minha memória. Me peguei chorando mais e mais e a cada
lágrima escorrida, mais lembranças surgiam. Umas me faziam rir em meio ao
choro, outras me causavam saudosismo, muitas repulsas. A alegria, que tantas
traziam não conseguiam me alcançar e caiam direto na pasta do esquecimento. Era aquele
portal, lá não se permitiam pensamentos felizes e do fundo eu só tinha a sensação,
a cada descida ele se tornava cada vez mais inalcançável. Eram quedas bruscas,
vácuos pressionando meu peito deixando as luzes tão distantes que quase não
podia mais vê-las. Tudo era sombra, tudo era escuridão. A
esperança se prostrava num jazigo à meia vida daquele caminho. Sem retorno
me prostrei a cerrar os olhos e me vi por dentro. Senti de longe um pequeno
pulsar. Sangue jorrava de meu coração por todas as partes de minha pequenez. Encapsulado,
minha memória me levou ao início de tudo. Senti o cheiro amniótico, um frio
libertador e um calor acolhedor. Na ânsia puxei o ar com tanta força que me
doeu os pulmões me fazendo gritar e expulsar a gosma que me sufocava. Braços cheios
de amor me envolveram e uma mistura excêntrica de um amor que nos faz chorar
confundiu minhas vontades. A lembrança da pequena lágrima retornou em forma de
rosto. Um rosto conhecido, que parece cais, âncora, rocha firme em um vasto
areal. Raízes partiam daqueles olhos acalorados e me confortaram. Então bati no
fundo. Macio. Cego pelo cerrar de olhos senti em meu rosto o mais delicado
toque vindo de lábios genitores. Foi uma lembrança, mas daquelas tão fortes que
se esculturam rígidas, eternas. E tudo se fez luz. O portal se esvaecia sobre
meu corpo decrépito e quase sem forças. O toque pulsava com força, criando cor onde só existia crepúsculo. A vida retorna
fechando a ferida, deixando uma fina linha que marca o exato momento em que fui
sugado pelo portal.
Uma cicatriz que, mesmo esquecida, nunca desaparecerá. O portal ainda se
condensa, o véu ainda está rasgado. Sombras e luzes ainda batalham pelo controle
e meu corpo ainda luta para manter a armadura daquela lembrança por sua defesa.
Anderson Lima
Que texto maravilhoso!! De tirar o fôlego!! 👏👏
ResponderExcluirQue texto incrível! ✨ Parabéns!
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